A
jurisprudência defensiva consiste, grosso modo, em um conjunto de
entendimentos — na maioria das vezes sem qualquer amparo legal —
destinados a obstaculizar o exame do mérito dos recursos, principalmente
de direito estrito (no processo civil, Recursos Extraordinário e
Especial) em virtude da rigidez excessiva em relação aos requisitos de
admissibilidade recursal.
Criticada por ampla doutrina, a
jurisprudência defensiva vinha encontrando abrigo, em maior ou menor
medida, no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça,
com base em fundamentos puramente pragmáticos: o excessivo número de
recursos aportados ano após ano nos tribunais de cúpula.
Assim
proliferaram orientações formalistas, como a inexistência de recurso
interposto por advogado não regularmente constituído (em que pese o
artigo 13 do CPC não fazer distinção a campo de sua aplicação); a
exigência do número do processo de origem na guia de recolhimento das
custas judiciárias, sem possibilidade de regularização; a
impossibilidade de comprovação de feriado local após a interposição do
recurso para os tribunais superiores; a intempestividade de de recurso
interposto antes da publicação em diário oficial do acórdão recorrido e o
não conhecimento de recurso especial não ratificado após o julgamento
de embargos de declaração da parte contrária.
Relativo
enfraquecimento, porém, vem sendo observado nos últimos anos na
jurisprudência defensiva, em parte pelas inúmeras críticas doutrinárias,
em parte pelo advento de institutos como a repercussão geral no Supremo
Tribunal Federal, que têm possibilitado alguma redução do número de
recursos distribuídos,[1] o que confirma ser a jurisprudência defensiva um artifício puramente pragmático).[2]
Assim é que, recentemente, por exemplo, asseverou-se possível a comprovação a posteriori
de feriado local que importe ampliação do prazo para o Recurso
Extraordinário ou Especial, como se vê em STF, RE 626.358 AgR, Pleno,
Rel. Min. Cezar Peluso, julg. 22.3.2012 e STJ, AgRg no AREsp 137.141,
Corte Especial, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julg. 19.2.2012.
O
número de recursos excepcionais, de todo modo, continua bastante
elevado, assim como a jurisprudência defensiva persiste como obstáculo
importante aos tribunais superiores, pulsando ainda forte nos julgados
de nossos Tribunais.
O projeto do novo Código de Processo Civil,
para resolver esse quadro de excessiva litigiosidade, aposta no
fortalecimento da jurisprudência dos tribunais e em institutos como o
incidente de resolução de demandas repetitivas, que amplia a técnica do
julgamento por amostragem, a ser suscitado perante tribunal de justiça
ou tribunal regional federal (artigo 988, § 1º). Ainda que de forma um
tanto quanto tímida, busca igualmente estimular a atuação dos órgãos e
agências reguladoras competentes para a fiscalização da prestação de
serviço concedido, permitido ou autorizado, determinando que sejam
comunicados do resultado do julgamento do incidente correspondente para
que assegurem o efetivo cumprimento da decisão (artigo 995, § 2º).
Em
que pese tratar-se de providências insuficientes para debelar o mal da
morosidade na justiça brasileira — cujas verdadeiras causas vão muito
além de uma simples reforma processual, passando pelas deficiências
estruturais e de gestão do serviço público judiciário, pela formação
excessivamente formalista e contenciosa dos profissionais do Direito e
pela indevida utilização do Judiciário como instrumento de moratória da
dívida pública —, há que se reconhecer que são propostas importantes e
positivas.
Por outro lado, o projeto do novo CPC, de forma
bastante elogiável, busca eliminar a famigerada jurisprudência defensiva
do ordenamento jurídico brasileiro.
Destaque-se, nesse sentido, os seguintes dispositivos, ilustrativos dessa orientação do projeto do novo Código:
(i)
art. 76, § 2º - deixa claro que o regramento do art. 13 do atual CPC se
aplica à instância recursal, de modo que, em caso de incapacidade
processual ou irregularidade de representação da parte, deverá o relator
possibilitar a correção do vício em prazo razoável, antes que não
conheça do recurso ou determine o desentranhamento das contrarrazões[3];
(ii)
art. 218, § 4º - estabelece a tempestividade do ato praticado
(interposição de recurso, por exemplo) antes do termo inicial do prazo;
(iii)
art. 1020, § 2º - determina que o equívoco no preenchimento da guia de
custas (como, por exemplo, a falta de referência ao número do processo
na origem) não resultará na aplicação da pena de deserção, incumbindo ao
relator, em caso de dúvida quanto ao recolhimento, intimar o recorrente
para sanar o vício em cinco dias ou solicitar informações ao órgão
arrecadador;
(iv) art. 1038 – admite o prequestionamento implícito
ou virtual, no sentido de se considerar incluídos no acórdão recorrido,
os elementos que o embargante pleiteou, para fins de prequestionamento,
ainda que os embargos de declaração sejam inadmitidos ou rejeitados,
caso o tribunal superior considere existentes erro, omissão, contradição
ou obscuridade;
(v) art. 1039, § 2º - afasta a necessidade de
ratificação de recurso interposto anteriormente ao julgamento de
embargos de declaração opostos pela parte contrária, desde que não se
altere a conclusão do julgamento da decisão embargada[4];
(vi)
art. 1042, § 3º - prevê que o Supremo Tribunal Federal ou o Superior
Tribunal de Justiça poderá desconsiderar vício formal de recurso
tempestivo ou determinar sua correção, desde que não o repute grave
(consunção processual), dispositivo este que, evidentemente, dependerá
da conformação mais ou menos formalista da jurisprudência dos tribunais
superiores;
(vii) art. 1045 – permite o aproveitamento do recurso
especial e sua conversão em extraordinário, caso se considere que a
insurgência versa sobre questão constitucional; e
(viii) art. 1046
– permite o aproveitamento do recurso extraordinário e sua conversão em
especial para o Superior Tribunal de Justiça, caso o Supremo Tribunal
Federal considere como reflexa a ofensa à Constituição nele veiculada,
por pressupor a revisão da interpretação de lei federal ou de tratado.
Em
que pese todos esses aspectos positivos, a tramitação legislativa do
projeto — concentrada em apenas alguns poucos dispositivos, como aqueles
que dizem respeito ao efeito suspensivo automático da apelação — não
acompanhou a recente evolução da jurisprudência e permitiu que um dos
aspectos da jurisprudência defensiva persista no novo CPC.
Vale
dizer: em pelo menos um dos pontos relacionados à jurisprudência
defensiva, a aprovação do projeto tal como se encontra representará
verdadeiro retrocesso.
Trata-se exatamente do ponto que diz
respeito à comprovação do feriado local que acarreta a prorrogação do
prazo recursal. Como já se viu, a jurisprudência mais recente do STF e
do STJ têm admitido sua demonstração após a interposição do recurso. Tal
orientação, no entanto, não foi observada no projeto, que assim dispõe
em seu artigo 1007, parágrafo 2º:
§ 2º O recorrente comprovará a ocorrência de feriado local no ato de interposição do recurso.
Como
se vê, mesmo em um dos pontos mais decantados pelos defensores do
projeto, o texto ainda necessita de ajuste e aperfeiçoamento.
Para
compatibilizar o projeto com a recente evolução da jurisprudência,
extirpando mais este aspecto da jurisprudência defensiva, seria
conveniente alterar o dispositivo, não somente para admitir a
comprovação do feriado local após o ato de interposição, como também
para ampliar sua incidência aos casos de suspensão do expediente
forense. Eis a proposta:
§ 2º A ocorrência de feriado local ou
suspensão de expediente forense na instância inferior poderá ser
comprovada após o ato de interposição do recurso.
Tal
alteração ao projeto do novo CPC, conquanto pontual, seria bastante
positiva, tornando-o mais compatível com seus propósitos fundamentais.
Aqui se encontra mais uma prova cabal, entre tantas outras já apontadas
em escritos anteriores, da necessidade de aprofundamento dos debates
antes que se ultime o processo legislativo.
[1]
A repercussão geral do Recurso Extraordinário foi regulamentada pela
Lei nº 11.418/2006, que passou a produzir efeitos a partir de 2007. Em
2006, foram distribuídos 116.216 processos no STF. No ano de 2007, o
número ainda continuou bastante alto, atingindo 112.938 processos. A
partir de 2008, esse número se reduziu para 66.873. Nos anos seguintes,
houve ainda maior redução: 42.729 (2009); 41.014 (2010); 38.109 (2011) e
46.392 (2012). A maior redução de processos distribuídos coube
justamente aos Recursos Extraordinários: 54.575 (2006); 49.708 (2007);
21.531 (2008); 8.348 (2009); 6.735 (2010); 6.388 (2011) e 6.042 (2012).
Todos os dados se encontram disponíveis em http://www.stf.jus.br, menu “Estatística”, submenu “RE, AI e ARE - % Distribuído” (acesso em 30.8.2013).
[2]
Nesse sentido, para promover semelhante redução no número de feitos
distribuídos ao Superior Tribunal de Justiça, tramita no Congresso
Nacional a Proposta de Emenda Constitucional nº 209/2012, que visa a
alterar o art. 105 da Constituição e estender ao Recurso Especial o
requisito da repercussão geral, de forma análoga à estabelecida para o
Recurso Extraordinário.
[3]
Buscando afastar o entendimento consolidado no Enunciado de Súmula nº
115 do STJ: “Na instância especial é inexistente recurso interposto por
advogado sem procuração nos autos.”
[4]
Buscando afastar o entendimento consolidado no Enunciado de Súmula nº
418/STJ: “ É inadmissível o recurso especial interposto antes da
publicação do acórdão dos embargos de declaração, sem posterior
ratificação.”.
Andre
Vasconcelos Roque é advogado, doutorando e mestre em Direito Processual
pela UERJ. Professor de Direito Processual Civil em cursos de
pós-graduação. Membro do IBDP, CBAr e IAB.
Fernando
da Fonseca Gajardoni é professor doutor de Direito processual civil da
Faculdade de Direito da USP – Ribeirão Preto e doutor e mestre em
Direito Processual pela Faculdade de Direito da USP
Luiz
Dellore é doutor e mestre em Direito Processual pela Faculdade de
Direito da USP (FD-USP). Mestre em Direito Constitucional pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor da
Universidade Presbiteriana Mackenzie.