Na semana passada foi realizado em Copenhague o 67º Congresso da International Fiscal Association
(IFA), do qual tive a honra de participar como conferencista em painel
dedicado às questões relacionadas com a tributação de operações
envolvendo os chamados créditos de carbono. Restou claro no
debate que muito embora a crise econômica europeia tenha contribuído
para o arrefecimento do mercado, o certo é que ainda não se conseguiram
criar melhores alternativas ao mecanismo do Protocolo de Kyoto que, ao
menos em números, tem se mostrado eficaz[1]. O desafio daqui em diante será conseguir interligar os mercados que se têm estabelecido em diversas jurisdições[2] e a harmonização do tratamento tributário será fundamental para tanto.
A
delegação brasileira presente no congresso uma vez mais foi
significativa. Participaram quase 70 delegados, entre advogados
autônomos, advogados de empresas, profissionais de empresas de
auditoria, procuradores e juízes. Para isso, foi fundamental o trabalho
da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), a representação
da IFA no Brasil (IFA Branch), capitaneada pelo seu
Secretário-Geral e nosso colega colunista Gustavo Brigagão e pelos
diretores lá presentes André Gomes de Oliveira[3], Marcos Vinhas Catão, André de Souza Carvalho e o professor Heleno Torres, também colunista desta ConJur, na condição de vice-presidente do Comitê Executivo da IFA.
Já
estamos na contagem regressiva para 2017, quando será a vez do Brasil. O
Rio de Janeiro sediará esse encontro de altíssimo nível científico pelo
que, doravante, a presença brasileira se faz cada vez mais importante.
Não
poderia deixar de fazer um agradecimento muito especial a Ana Cláudia
Utumi que muito contribuiu para me proporcionar essa experiência única,
submetendo meu nome à organização para representar a América Latina.
Diretora da ABDF em São Paulo e membro do Comitê Científico Permanente
da IFA, órgão que define o conteúdo científico dos congressos, Ana
Cláudia participou da concorrida mesa de debates dedicada às questões
atuais da tributação internacional, ao lado de expoentes como Phillip
Baker, Jeffrey Owens, Jacques Sasseville, Porus Kaka (presidente da
IFA), entre outros.
Coube a ela a árdua tarefa de expor ao público
as “novidades” do Brasil, especialmente explicar a decisão tomada em
abril desse ano pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 2.588 sobre a
inconstitucionalidade do artigo 74 da MP 2.158-35/2001 que, combinado
com o artigo 25 da Lei 9.249/95, instituiu no Brasil um sistema de
tributação único, que taxa automaticamente os lucros não distribuídos de
sociedades controladas e coligadas no exterior.
Como os leitores devem se recordar, em nossa coluna de 17 de abril de 2013, intitulada Tributação de lucro no exterior segue indefinida no STF,
debruçamo-nos sobre diversos aspectos da decisão e concluímos que o STF
— especialmente após o voto-vista do ministro Joaquim Barbosa — tentou
corrigir os rumos, dando uma interpretação conforme a Constituição para
compatibilizar a legislação extraterritorial do Brasil com as práticas
internacionais. De acordo com essa orientação as normas de tributação
automática somente seriam constitucionais quando aplicadas a lucros
oriundos de sociedades controladas domiciliadas nos chamados “paraísos
fiscais”. No que concerne aos países “normais”, isto é, que tributam
efetivamente a renda, a lei seria inconstitucional.
Sucede que a questão acabou sendo resolvida em termos erga omnes
apenas para afirmar a constitucionalidade da aplicação da lei para
controladas em paraísos fiscais, remanescendo por decidir o que fazer em
relação aos lucros de controladas nos países “normais”, dentre os quais
estão, naturalmente, os países que celebraram tratados contra a dupla
tributação com o Brasil.
Sem aguardar um pronunciamento final do
Poder Judiciário a respeito da matéria, o Fisco brasileiro, em (mais)
uma demonstração de total e absoluto desrespeito às regras de tributação
internacional, emitiu a Solução de Consulta Interna 18 – Cosit, de 8 de
agosto de 2013, em que concluiu: “A aplicação do disposto no artigo 74
da Medida Provisória 2.158-35, de 2001, não viola os tratados
internacionais para evitar a dupla tributação”.
O silogismo do
pensamento do Fisco lê-se nas conclusões: “34.1 a norma interna incide
sobre o contribuinte brasileiro, inexistindo qualquer conflito com os
dispositivos do tratado que versam sobre a tributação de lucros; 34.2 o
Brasil não está tributando os lucros da sociedade domiciliada no
exterior, mas sim os lucros auferidos pelos próprios sócios brasileiros;
e 34.3 a legislação brasileira permite à empresa investidora no Brasil o
direito de compensar o imposto pago no exterior, ficando, assim,
eliminada a dupla tributação, independentemente da existência de
tratado”.
Com o devido respeito à Cosit, o silogismo de seu
pensamento assenta em premissas absolutamente falsas. Muitas delas já
foram por nós refutadas em outras colunas, mas não podemos deixar de
recordá-las, ainda que brevemente.
Obviamente a norma interna só
poderia incidir sobre contribuinte brasileiro. Embora tudo se possa
esperar do Fisco brasileiro, ele ainda não teve a ousadia de considerar
contribuinte no Brasil empresas estrangeiras. Mas a verdade é que o objeto da tributação previsto em lei
é o lucro de empresa estrangeira. O artigo 25, inciso II, da Lei
9.249/95 é imperativo: “os lucros a que se refere o inciso I serão adicionados ao lucro líquido da matriz ou controladora na proporção de sua participação acionária, para apuração do lucro real”.
A
adição dos lucros das sociedades estrangeiras ao lucro líquido da
controladora não tem o condão de conferir nacionalidade brasileira aos
mesmos. São e continuarão sendo lucros de sociedades controladas, com
personalidade jurídica própria, domiciliadas no exterior e aí submetidas
à tributação local.
E nem se diga que a obrigação de avaliar
investimentos pelo método da equivalência patrimonial (MEP) teria o
condão de promover referida “nacionalização”. Ora, o MEP é adotado no
Brasil desde a Lei 6.404/1976 como uma técnica de avaliação contábil dos
investimentos em sociedades coligadas e controladas. Com ele
pretendeu-se conferir aos acionistas uma “ferramenta” para ver
refletidas na “sociedade-mãe” as variações patrimoniais das empresas
situadas nos diversos degraus de uma cadeia de participações. Mas o
Decreto-lei 1.598/77, consentâneo com o artigo 43 do Código Tributário
Nacional (CTN), consagrou a neutralidade fiscal dos elementos (positivos
e negativos) que compõe o chamado resultado de equivalência patrimonial
em seu art. 23 e parágrafo único, verbis:
“A contrapartida do ajuste de que trata o artigo 22, por aumento ou redução no valor de patrimônio líquido do investimento, não será computada na determinação do lucro real.”
“Parágrafo único. Não serão computadas na determinação do lucro real as contrapartidas de ajuste do valor do investimento ou da amortização do ágio ou deságio na aquisição, nem os ganhos ou perdas de capital derivados de investimentos em sociedades estrangeiras coligadas ou controladas que não funcionem no País”.
Que a lei
não tributa o resultado de equivalência patrimonial também proveniente
de participadas estrangeiras foi categoricamente afirmado no parágrafo
6º do artigo 25 da Lei 9.249/1995: “os resultados da avaliação dos
investimentos no exterior, pelo método da equivalência patrimonial,
continuarão a ter o tratamento previsto na legislação vigente, sem prejuízo do disposto nos parágrafos 1º, 2º e 3º”.
Afirmar-se
que o objeto da tributação é o resultado de equivalência trata-se de um
expediente engenhoso do Fisco para burlar a lei. Uma inovação criada
por mero ato administrativo — a Instrução Normativa 213, de 7 de outubro
de 2002 — que deve ser tida como ilegal, conforme, aliás, já decidiu o
Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.211.882/RJ.
Sendo o objeto da tributação previsto em LEI o lucro da sociedade estrangeira adicionado
ao lucro líquido da sócia empresa brasileira é sim plenamente aplicável
o artigo VII dos tratados contra a dupla tributação que seguem o Modelo
OCDE, segundo o qual: “Os lucros de uma empresa de um Estado
Contratante só podem ser tributados nesse Estado”.
O
direito de compensar o imposto pago no exterior como justificativa para a
suposta inexistência de dupla tributação é outra falácia. Ora, não há
uniformidade nas alíquotas, nem nos critérios de tributação nos diversos
países. A empresa brasileira pode investir em um país mais
desenvolvido, que tributa a renda à alíquota de 25%; pode investir em um
país menos desenvolvido que quer atrair investimentos e tributa a renda
a 15%, por exemplo. A adição desse lucro no Brasil importará em uma
carga tributária de 34% (25% de IRPJ e 9% de CSLL). É correto o Brasil
apropriar-se dessas diferenças? Será mesmo fiscalmente neutro o regime
nacional a ponto de evitar a dupla tributação? Evidente que não.
E
se o país de domicílio da controlada aplicar uma retenção na fonte
sobre dividendos, como fica a posição do contribuinte brasileiro? Pagará
o imposto duas vezes. A primeira por ocasião da adição do lucro não
distribuído em 31 de dezembro e a segunda por ocasião do recebimento dos
dividendos, quando o país da fonte legitimamente poderá fazer incidir
uma retenção. Dará o Brasil magnanimamente um “duplo” crédito?
Duvidamos.
Não ignoramos que a OCDE tem interpretado que as normas do tipo “CFC” (Controlled Foreign Corporations)
não são incompatíveis com o artigo VII da Convenção Modelo e que é uma
diretriz do G 20 aprimorar as regras de tributação internacional com
vistas a inibir práticas que promovam a erosão da base fiscal e o desvio
de lucros (Base Erosion and Profit Shifting - BEPS).
Mas
também não há dúvidas que também é muito grande a preocupação dos
países membros da OCDE na defesa das suas empresas multinacionais. As
CFCs são normas especiais, que têm por objetivo combater a evasão fiscal
e o abuso, aplicáveis a controladas em paraísos fiscais e a rendas de
natureza passiva. Jamais se viu uma CFC aplicar-se a rendimentos de
operações industriais e comerciais ativas. Só no Brasil. Por isso
podemos afirmar, sem qualquer sombra de dúvida, que a norma brasileira não
é do tipo CFC e por isso é sim incompatível com o artigo VII, não sendo
invocável o item 10.1 do Comentário da OCDE ao parágrafo 1º do artigo
VII.
A decisão do STF na ADI 2.588 acabou por imprimir à lei
interna uma das características de uma norma típica CFC, ao considerá-la
constitucional quando aplicada aos chamados paraísos fiscais. O
trabalho do STF deve ser finalizado pelos Tribunais e urge que se
reconheça a inconstitucionalidade de sua aplicação aos países “normais”
ou, ao menos, sua incompatibilidade manifesta com o artigo VII dos
tratados contra a dupla tributação celebrados pelo Brasil.
Os
países desenvolvidos preocupam-se com a saúde financeira das suas
empresas, com a capacidade de geração de empregos e de riqueza para a
nação. Estão em busca permanente de medidas legislativas equilibradas
para assegurar arrecadação e competitividade. O Brasil, infelizmente,
tem mostrado total e absoluto descaso com as suas multinacionais,
insistindo em medidas tributárias que só desestimulam e prejudicam sua
atuação no plano internacional.
Aprendi em visita ao Museu Nacional na Dinamarca que o termo viking designa uma ação. Dizia-se que os antigos nórdicos iam viking quando saiam com seus barcos para saquear e pilhar aldeias e cidades para trazer de volta o butim. Vamos viking parece
ser a diretriz da Cosit aos seus fiscais. Pobres dos
empresários-contribuintes brasileiros que não tem o Estado ao seu lado.
[1]
O chamado mercado de carbono ajudou a reduzir as emissões de carbono em
um bilhão de toneladas em sete anos, atraiu USD 215 bilhões em
investimentos em energia renovável nos países em desenvolvimento (mais
do que qualquer fundo ambiental privado) e reduziu os gastos em de
contenção das mudanças climáticas em USD 3,6 bilhões. (The Economist –
www.economist.com/node/21562961)
[2] Europa, Austrália, Nova Zelândia, Califórnia.
[3] Responsável pelo
National report do
Subject 1 –
The taxation of foreign passive income for groups of companies (A tributação de rendas passivas nos grupos de empresas).