Regime de bens e divisão da herança: dúvidas jurídicas no fim do casamento
Antes da celebração do casamento, os noivos
têm a possibilidade de escolher o regime de bens a ser adotado, que
determinará se haverá ou não a comunicação (compartilhamento) do
patrimônio de ambos durante a vigência do matrimônio. Além disso, o
regime escolhido servirá para administrar a partilha de bens quando da
dissolução do vínculo conjugal, tanto pela morte de um dos cônjuges,
como pela separação.
O instituto, previsto nos artigos 1.639 a
1.688 do Código Civil de 2002 (CC/02), integra o direito de família, que
regula a celebração do casamento e os efeitos que dele resultam,
inclusive o direito de meação (metade dos bens comuns) – reconhecido ao
cônjuge ou companheiro, mas condicionado ao regime de bens estipulado.
A
legislação brasileira prevê quatro possibilidades de regime
matrimonial: comunhão universal de bens (artigo 1.667 do CC), comunhão
parcial (artigo 1.658), separação de bens – voluntária (artigo 1.687) ou
obrigatória (artigo 1.641, inciso II) – e participação final nos bens
(artigo 1.672).
A escolha feita pelo casal também exerce
influência no momento da sucessão (transmissão da herança), prevista nos
artigos 1.784 a 1.856 do CC/02, que somente ocorre com a morte de um
dos cônjuges.
Segundo o ministro Luis Felipe Salomão, da Quarta
Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), “existe, no plano
sucessório, influência inegável do regime de bens no casamento, não se
podendo afirmar que são absolutamente independentes e sem
relacionamento, no tocante às causas e aos efeitos, esses institutos que
a lei particulariza nos direitos de família e das sucessões”.
Regime legal
Antes
da Lei 6.515/77 (Lei do Divórcio), caso não houvesse manifestação de
vontade contrária, o regime legal de bens era o da comunhão universal – o
cônjuge não concorre à herança, pois já detém a meação de todo o
patrimônio do casal. A partir da vigência dessa lei, o regime legal
passou a ser o da comunhão parcial, inclusive para os casos em que for
reconhecida união estável (artigos 1.640 e 1.725 do CC).
De
acordo com o ministro Massami Uyeda, da Terceira Turma do STJ, “enquanto
na herança há substituição da propriedade da coisa, na meação não, pois
ela permanece com seu dono”.
No julgamento do Recurso Especial
(REsp) 954.567, o ministro mencionou que o CC/02, ao contrário do
CC/1916, trouxe importante inovação ao elevar o cônjuge ao patamar de
concorrente dos descendentes e dos ascendentes na sucessão legítima
(herança). “Com isso, passou-se a privilegiar as pessoas que, apesar de
não terem grau de parentesco, são o eixo central da família”, afirmou.
Isso
porque o artigo 1.829, inciso I, dispõe que a sucessão legítima é
concedida aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente
(exceto se casado em regime de comunhão universal, em separação
obrigatória de bens – quando um dos cônjuges tiver mais de 70 anos ao se
casar – ou se, no regime de comunhão parcial, o autor da herança não
tiver deixado bens particulares).
O inciso II do mesmo artigo
determina que, na falta de descendentes, a herança seja concedida aos
ascendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente,
independentemente do regime de bens adotado no casamento.
União estável
Em
relação à união estável, o artigo 1.790 do CC/02 estabelece que, além
da meação, o companheiro participa da herança do outro, em relação aos
bens adquiridos na vigência do relacionamento.
Nessa hipótese, o
companheiro pode concorrer com filhos comuns, na mesma proporção; com
descendentes somente do autor da herança, tendo direito à metade do que
couber ao filho; e com outros parentes, tendo direito a um terço da
herança.
No julgamento do REsp 975.964, a ministra Nancy
Andrighi, da Terceira Turma do STJ, analisou um caso em que a suposta
ex-companheira de um falecido pretendia concorrer à sua herança. A ação
de reconhecimento da união estável, quando da interposição do recurso
especial, estava pendente de julgamento.
Consta no processo que o
falecido havia deixado um considerável patrimônio, constituído de
imóveis urbanos, várias fazendas e milhares de cabeças de gado. Como não
possuía descendentes nem ascendentes, quatro irmãs e dois sobrinhos –
filhos de duas irmãs já falecidas – seriam os sucessores.
Entretanto,
a suposta ex-companheira do falecido moveu ação buscando sua admissão
no inventário, ao argumento de ter convivido com ele, em união estável,
por mais de 30 anos. Além disso, alegou que, na data da abertura da
sucessão, estava na posse e administração dos bens deixados por ele.
Meação
De
acordo com a ministra Nancy Andrighi, com a morte de um dos
companheiros, entrega-se ao companheiro sobrevivo a meação, que não se
transmite aos herdeiros do falecido. “Só então, defere-se a herança aos
herdeiros do falecido, conforme as normas que regem o direito das
sucessões”, afirmou.
Ela explicou que a meação não integra a
herança e, por consequência, independe dela. “Consiste a meação na
separação da parte que cabe ao companheiro sobrevivente na comunhão de
bens do casal, que começa a vigorar desde o início da união estável e se
extingue com a morte de um dos companheiros. A herança, diversamente, é
a parte do patrimônio que pertencia ao companheiro falecido, devendo
ser transmitida aos seus sucessores legítimos ou testamentários”,
esclareceu.
Para resolver o conflito, a Terceira Turma
determinou que a posse e administração dos bens que integravam a
provável meação deveriam ser mantidos sob a responsabilidade da
ex-companheira, principalmente por ser fonte de seu sustento, devendo
ela requerer autorização para fazer qualquer alienação, além de prestar
contas dos bens sob sua administração.
Regras de sucessão
A
regra do artigo 1.829, inciso I, do CC, que regula a sucessão quando há
casamento em comunhão parcial, tem sido alvo de interpretações
diversas. Para alguns, pode parecer que a regra do artigo 1.790, que
trata da sucessão quando há união estável, seja mais favorável.
No
julgamento do REsp 1.117.563, a ministra Nancy Andrighi afirmou que não
é possível dizer, com base apenas nas duas regras de sucessão, que a
união estável possa ser mais vantajosa em algumas hipóteses, “porquanto o
casamento comporta inúmeros outros benefícios cuja mensuração é
difícil”.
Para a ministra, há uma linha de interpretação, a qual
ela defende, que toma em consideração a vontade manifestada no momento
da celebração do casamento, como norte para a interpretação das regras
sucessórias.
Companheira e filha
No
caso específico, o autor da herança deixou uma companheira, com quem
viveu por mais de 30 anos, e uma filha, fruto de casamento anterior.
Após sua morte, a filha buscou em juízo a titularidade da herança.
O
juiz de primeiro grau determinou que o patrimônio do falecido,
adquirido na vigência da união estável, fosse dividido da seguinte
forma: 50% para a companheira (correspondente à meação) e o remanescente
dividido entre ela e a filha, na proporção de dois terços para a filha e
um terço para a companheira.
Para a filha, o juiz interpretou
de forma absurda o artigo 1.790 do CC, “à medida que concederia à mera
companheira mais direitos sucessórios do que ela teria se tivesse
contraído matrimônio, pelo regime da comunhão parcial”.
Ao
analisar o caso, Nancy Andrighi concluiu que, se a companheira tivesse
se casado com o falecido, as regras quanto ao cálculo do montante da
herança seriam exatamente as mesmas.
Ou seja, a divisão de 66%
dos bens para a companheira e de 33% para a filha diz respeito apenas ao
patrimônio adquirido durante a união estável. “O patrimônio particular
do falecido não se comunica com a companheira, nem a título de meação,
nem a título de herança. Tais bens serão integralmente transferidos à
filha”, afirmou.
De acordo com a ministra, a melhor
interpretação do artigo 1.829, inciso I, é a que valoriza a vontade das
partes na escolha do regime de bens, mantendo-a intacta, tanto na vida
quanto na morte dos cônjuges.
“Desse modo, preserva-se o regime
da comunhão parcial de bens, de acordo com o postulado da
autodeterminação, ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o direito à
meação, além da concorrência hereditária sobre os bens comuns, haja ou
não bens particulares, partilháveis estes unicamente entre os
descendentes”, mencionou.
Vontade do casal
Para
o desembargador convocado Honildo Amaral de Mello Castro (já
aposentado), “não há como dissociar o direito sucessório dos regimes de
bens do casamento, de modo que se tenha após a morte o que, em vida, não
se pretendeu”.
Ao proferir seu voto no julgamento de um recurso
especial em 2011 (o número não é divulgado em razão de segredo
judicial), ele divergiu do entendimento da Terceira Turma, afirmando
que, se a opção feita pelo casal for pela comunhão parcial de bens,
ocorrendo a morte de um dos cônjuges, ao sobrevivente é garantida
somente a meação dos bens comuns – adquiridos na vigência do casamento.
No
caso, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal reformou sentença de
primeiro grau para permitir a concorrência, na sucessão legítima, entre
cônjuge sobrevivente, casado em regime de comunhão parcial, e filha
exclusiva do de cujus (autor da herança), sobre a totalidade da herança.
A
menor, representada por sua mãe, recorreu ao STJ contra essa decisão,
sustentando que, além da meação, o cônjuge sobrevivente somente concorre
em relação aos bens particulares do falecido, conforme a decisão
proferida em primeiro grau.
Interpretação
Para
o desembargador Honildo Amaral, em razão da incongruência da redação do
artigo 1.829, inciso I, do CC/02, a doutrina brasileira possui
correntes distintas acerca da interpretação da sucessão do cônjuge
casado sob o regime de comunhão parcial de bens.
Em seu
entendimento, a decisão que concedeu ao cônjuge sobrevivente, além da
sua meação, direitos sobre todo o acervo da herança do falecido, além de
ferir legislação federal, desrespeitou a autonomia de vontade do casal
quando da escolha do regime de comunhão parcial de bens.
O
desembargador explicou que, na sucessão legítima sob o regime de
comunhão parcial, não há concorrência em relação à herança, nem mesmo em
relação aos bens particulares (adquiridos antes do casamento), visto
que o cônjuge sobrevivente já está amparado pela meação. “Os bens
particulares dos cônjuges são, em regra, incomunicáveis em razão do
regime convencionado em vida pelo casal”, afirmou.
Apesar disso,
ele mencionou que existe exceção a essa regra. Se inexistentes bens
comuns ou herança a partilhar, e o falecido deixar apenas bens
particulares, a concorrência é permitida, “tendo em vista o caráter
protecionista da norma que visa não desamparar o sobrevivente nessas
situações excepcionais”.
Com esse entendimento, a Quarta Turma
conheceu parcialmente o recurso especial e, nessa parte, deu-lhe
provimento. O desembargador foi acompanhado pelos ministros Luis Felipe
Salomão e João Otávio de Noronha.
Contra essa decisão, há
embargo de divergência pendente de julgamento na Segunda Seção do STJ,
composta pelos ministros da Terceira e da Quarta Turma.
Proporção do direito
É
possível que a companheira receba verbas do trabalho pessoal do
falecido por herança? Em caso positivo, concorrendo com o único filho do
de cujus, qual a proporção do seu direito?
A Quarta
Turma do STJ entendeu que sim. “Concorrendo a companheira com o
descendente exclusivo do autor da herança – calculada esta sobre todo o
patrimônio adquirido pelo falecido durante a convivência –, cabe-lhe a
metade da quota-parte destinada ao herdeiro, vale dizer, um terço do
patrimônio do de cujus”, afirmou o ministro Luis Felipe Salomão em julgamento de 2011 (recurso especial que também tramitou em segredo).
No
caso analisado, a herança do falecido era composta de proventos e
diferenças salariais, resultado do seu trabalho no Ministério Público,
não recebido em vida. Após ser habilitado como único herdeiro
necessário, o filho pediu em juízo o levantamento dos valores deixados
pelo pai.
O magistrado indeferiu o pedido, fundamentando que a
condição de único herdeiro necessário não estava comprovada, visto que
havia ação declaratória de união estável pendente. O tribunal estadual
entendeu que, se fosse provada e reconhecida a união estável, a
companheira teria direito a 50% do valor da herança.
Distinção
O
ministro Salomão explicou que o artigo 1.659, inciso VI, do CC, segundo
o qual, os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge ficam
excluídos da comunhão, refere-se ao regime de comunhão parcial de bens.
Ele
disse que o dispositivo não pode ser interpretado de forma conjunta com
o disposto no artigo 1.790, inciso II, do CC/02, que dispõe a respeito
da disciplina dos direitos sucessórios na união estável.
Após
estabelecer a distinção dos dispositivos, ele afirmou que o caso
específico correspondia ao direito sucessório. Por essa razão, a regra
do artigo 1.659, inciso VI, estaria afastada, cabendo à companheira um
terço do valor da herança.
Separação de bens
Um
casal firmou pacto antenupcial em 1950, no qual declararam que seu
casamento seria regido pela completa separação de bens. Dessa forma,
todos os bens, presentes e futuros, seriam incomunicáveis, bem como os
seus rendimentos, podendo cada cônjuge livremente dispor deles, sem
intervenção do outro.
Em 2001, passados mais de 50 anos de
relacionamento, o esposo decidiu elaborar testamento, para deixar todos
os seus bens para um sobrinho, firmando, entretanto, cláusula de
usufruto vitalício em favor da esposa.
O autor da herança
faleceu em maio de 2004, quando foi aberta sua sucessão, com
apresentação do testamento. Quase quatro meses depois, sua esposa
faleceu, abrindo-se também a sucessão, na qual estavam habilitados 11
sobrinhos, filhos de seus irmãos já falecidos.
Nova legislação
O
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reformou a sentença de primeiro
grau para habilitar o espólio da mulher no inventário dos bens do
esposo, sob o fundamento de que, como as mortes ocorreram na vigência do
novo Código Civil, prevaleceria o novo entendimento, segundo o qual o
cônjuge sobrevivente é equiparado a herdeiro necessário, fazendo jus à
meação, independentemente do regime de bens.
No REsp 1.111.095, o
espólio do falecido sustentou que, no regime da separação convencional
de bens, o cônjuge sobrevivente jamais poderá ser considerado herdeiro
necessário. Alegou que a manifestação de vontade do testador, feita de
acordo com a legislação vigente à época, não poderia ser alterada pela
nova legislação.
O ministro Fernando Gonçalves (hoje aposentado)
explicou que, baseado em interpretação literal da norma do artigo 1.829
do CC/02, a esposa seria herdeira necessária, em respeito ao regime de
separação convencional de bens.
Entretanto, segundo o ministro,
essa interpretação da regra transforma a sucessão em uma espécie de
proteção previdenciária, visto que concede liberdade de autodeterminação
em vida, mas retira essa liberdade com o advento da morte.
Para
ele, o termo “separação obrigatória” abrange também os casos em que os
cônjuges estipulam a separação absoluta de seus patrimônios,
interpretação que não conflita com a intenção do legislador de corrigir
eventuais injustiças e, ao mesmo tempo, respeita o direito de
autodeterminação concedido aos cônjuges quanto ao seu patrimônio.
Diante
disso, a Quarta Turma deu provimento ao recurso, para indeferir o
pedido de habilitação do espólio da mulher no inventário de bens deixado
pelo seu esposo.
Coordenadoria de Editoria e Imprensa
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15/07/2013 |