A
relação com o Judiciário é um dos aspectos mais sensíveis da
arbitragem. Considera-se que as partes, ao convencionarem submeter
determinado pleito à resolução por meio de árbitros, procuraram afastar o
Judiciário do conhecimento dessa controvérsia. Por isso, causa estupor
quando decisões judiciais interferem em processos arbitrais, proferindo o
que se conhece em inglês como anti-arbitration injuctions [1].
Ninguém
duvida que há necessidade de um controle por parte do Judiciário na
arbitragem. Entretanto, uma convivência salutar entre o Judiciário e a
arbitragem requer certo equilíbrio. Se autorizada uma intervenção ampla
do Judiciário, corre-se o risco de a arbitragem perder os incentivos e
as vantagens pelas quais os usuários a escolhem como método de solução
de controvérsias (v. gr. autonomia, flexibilidade, celeridade,
confidencialidade, entre outros). Por outro lado, uma arbitragem sem
qualquer controle do Judiciário significaria deixar os usuários
desamparados ante a ausência de proteção frente aos árbitros, o que
também os levaria à desconfiança e à não utilização do instituto.
Para
vingar, a arbitragem requer um Judiciário que faça respeitar os
princípios basilares do instituto a cada intento de violação, seja pelas
partes, pelos árbitros ou pelas entidades que administram procedimentos
arbitrais.
O controle do Poder Judiciário é necessário. Todavia,
cabe indagar em que momento deve ser exercido. O direito comparado
majoritariamente admite o controle do Judiciário no fim do processo
arbitral[2].
O controle posterior do Judiciário reconhece o principio da autonomia
da vontade das partes, segundo o qual, se estas decidiram livremente
submeter determinada disputa à resolução por meio de árbitros não pode
uma delas, depois de surgido o conflito, porque não lhe interessa ou
convém, acudir ao Judiciário para impedir o normal curso da arbitragem.
A Lei 9.307/1996 estabeleceu o controle judicial posterior, a ser exercido por ocasião da ação de anulação da sentença arbitral[3]. O artigo 8 da Lei de Arbitragem, no qual encontram-se dois princípios fundamentais do instituto da arbitragem, o principio da kompetenz-kompetenz
e o principio da autonomia da cláusula compromissória, é garantia de
que o controle do Judiciário na arbitragem será exercido após proferida
sentença arbitral[4].
O principio da kompetenz-kompetenz
estabelece uma hierarquia cronológica entre o árbitro e o juiz togado,
por força da qual o árbitro é quem decide, em primeiro lugar, a respeito
de sua competência para conhecer e decidir acerca de determinada
controvérsia[5].
Pelo principio da autonomia da cláusula compromissória, esta é
considerada independente do contrato no qual encontra-se inserida e, em
sendo o contrato nulo ou inválido, a cláusula permanece eficaz a fim de o
árbitro poder avaliar a respeito da sua jurisdição para dirimir essa
disputa.
Ambos os princípios são uma salvaguarda contra a parte
recalcitrante que, havendo celebrado uma convenção de arbitragem, após
surgido o conflito, recusa submeter-se à arbitragem e procura o auxílio
judicial para impedir o andamento do processo arbitral.
Cabe,
ainda, indagar quando deve operar o controle do Judiciário nos casos em
que constam da cláusula compromissória outros métodos de solução de
conflitos (multi-tier clauses [6]) ou, em que a cláusula compromissória é uma cláusula combinada[7] ou fracionada[8], na qual se prevê a arbitragem e a eleição de foro.
Ambos
os tipos de cláusulas são perfeitamente possíveis. Afinal, os métodos
alternativos de solução de conflitos decorrem da autonomia da vontade
das partes e pode ser que estas considerem ser conveniente prever outros
métodos, anteriores à arbitragem, para resolver disputas, notadamente, a
negociação ou a mediação, ou, prevejam a eleição de foro, para impetrar
medidas cautelares antes de constituído o Tribunal Arbitral ou para
proceder à execução da sentença arbitral.
A dificuldade com essas
cláusulas surge quando redigidas de forma inapropriada, pois provocam
dúvidas quanto aos limites e às condições de utilização de cada método
de solução de controvérsias e do foro de eleição. Nestes casos, cabe
indagar se o Judiciário deve intervir antes do árbitro e, interpretando a
vontade das partes, decidir em que medida as partes devem se submeter à
mediação, à arbitragem ou ao foro de eleição.
Somos da opinião de
que o Judiciário, nestes casos, por força do artigo 8º da Lei 9307/96,
não deve intervir antes do árbitro. E em razão de não haver, na Lei de
Arbitragem, nenhuma limitação ao principio da Kompetenz-Kompetenz e ao principio da autonomia da cláusula compromissória, em havendo previsão de arbitragem em uma cláusula multi-tier
ou em uma cláusula fracionada, o Judiciário deve remeter as partes à
arbitragem, para o árbitro decidir, em primeiro lugar, a respeito da sua
competência, bem como do alcance de sua jurisdição.
A arbitragem é um método de solução de controvérsias de exceção.
Estão obrigados a submeter pendências à arbitragem apenas aqueles que se obrigaram de forma escrita (Lei 9.307/96, art. 4º, § 1º[9]).
Se a intenção fosse resolver o pleito por meio do foro de eleição, as
partes não precisariam incluir previsão de arbitragem em seu contrato.
Desde que inserida no contrato a cláusula compromissória, entende-se que
as partes manifestaram seu compromisso de resolver suas pendências por
meio de arbitragem.
Caberá, assim, ao árbitro, em primeiro lugar,
por força do art. 8 da Lei 9.307/96, interpretar a vontade das partes,
decidindo a respeito de sua competência, bem como da extensão da mesma,
restando o controle do Judiciário para um momento posterior, quando da
ação de anulação da sentença arbitral.
A razão de ser desta
posição encontra-se na origem da arbitragem, que é contratual. Portanto,
aplicam-se à cláusula compromissória os princípios que informam a
teoria dos Contratos, o pacta sunt servanda ( o contrato é lei entre as partes), o principio da boa fé (art. 422 do Código Civil[10]), o venirem contra factum próprio[11].
Se
as partes pactuaram livremente a arbitragem para dirimir seus pleitos,
cabe ao Judiciário, quando acionado, em cumprimento do artigo 8º da Lei
de Arbitragem, encaminhar as partes à arbitragem, para que o árbitro
decida, em primeiro lugar, se possui ou não competência para dirimir
esse pleito e, em havendo outro método de solução de controvérsias, ou
mesmo previsão de foro de eleição, definir qual é a extensão da sua
jurisdição face essas outras formas de solução de conflitos.
Existindo
previsão de arbitragem, a intervenção anterior do Judiciário, afastando
a jurisdição do árbitro ou do tribunal arbitral, constituiria uma
violação do artigo 8º da Lei de Arbitragem, bem como um desrespeito aos
princípios basilares da Teoria dos Contratos.
Por ocasião da Reclamação nr. 9.030-SP[12],
a ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça, teve
oportunidade de se manifestar em relação ao principio da
competência-competência. Segundo decisão monocrática da ministra Nancy
Andrighi, cabe ao árbitro, eleito pelas partes, julgar sua própria
competência:
“A teor do disposto no art. 8, parágrafo único, e 20,
da Lei 9.307/96, questões atinentes à existência, validade e eficácia
da cláusula compromissória deverão ser apreciadas pelo árbitro. Trata-se
da Kompetenz-Kompetenz (competência- competência), um dos
princípios basilares da arbitragem, que confere ao árbitro o poder de
decidir sobre a sua própria competência, sendo condenável qualquer
tentativa, das partes ou do juiz estatal, no sentido de alterar essa
realidade.”
Recentemente, decisão do STJ no caso CEBSA x S E Ltda,
declarando a competência do tribunal arbitral para dirimir controvérsia
decorrente de contrato do qual constava cláusula compromissória, após
conflito de competência suscitado entre o Judiciário do Rio de Janeiro e
o Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil Canadá
(CAM-CCBC), confirmou o quanto estabelecido no artigo 8º da Lei
9.307/1996, deixando, assim, o controle do Judiciário para ser exercido
em momento posterior à prolação da sentença arbitral[13].
[1]
"Apesar de a Lei nº 9.307/1996 e os arts. 267, VII e 301, § 4º, do CPC
estabelecerem, de forma inequívoca, o efeito negativo da cláusula
compromissória, encontra-se, ainda, artifícios que são utilizados por
uma parte recalcitrante para tentar escapar do procedimento arbitral.
Uma parte poderia introduzir uma ação judicial com a finalidade de
suspender ou interromper um procedimento arbitral sob o fundamento de
que a cláusula arbitral é inexistente, nula, ineficaz ou caduca. Essas
ações judiciais são conhecidas em direito comparado como
anti-arbitration injunctions." João Bosco Lee. Parecer: Eficácia da
Cláusula Arbitral. Aplicação da Lei de Arbitragem no Tempo. Transmissão
da Cláusula Compromissória. Anti-suit Injunction In Revista Brasileira de Arbitragem, nr. 11 (Jul/Ago/Set), Editora IOB, 2006, pg. 34
[2] Roque J. Caivano. Control Judicial en el Arbitraje. Abeledo Perrot, 2011, p. 606
[3]
Lei 9.307/96: Art. 33. A parte interessada poderá pleitear ao órgão do
Poder Judiciário competente a decretação da nulidade da sentença
arbitral, nos casos previstos nesta Lei.
[4]
Lei 9.307/96: Art. 8º A cláusula compromissória é autônoma em relação
ao contrato em que estiver inserta, de tal sorte que a nulidade deste
não implica, necessariamente, a nulidade da cláusula compromissória.
Parágrafo único. Caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação
de partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da
convenção de arbitragem e do contrato que contenha cláusula
compromissória.
[5] A pesar da denominação kompetenz-kompetenz (competência-competência),
o principio refere-se à jurisdição do árbitro. O art. 8 da Lei 9.307/96
delimita qual das duas jurisdições, a arbitral ou a estatal, está
legitimada para apreciar determinado conflito.
[6]
Solução de disputa multi-tier significa combinar negociação e/ou
mediação com arbitragem, oferecendo às partes algumas opções menos
formais, mais econômicas, não-obrigatórias e mais flexíveis que o
processo judicial ou a arbitragem isolada. Geralmente funciona de
seguinte forma: se por um determinado período as partes não chegarem a
uma via satisfatória de solução de controvérsias seja pela negociação,
consultoria de especialistas, mediação ou a combinação destas soluções,
as mesmaspodem ir para arbitragem ou processo judicial. Isto permite
escolher opções mais flexíveis com a chance de optar por outro método
primeiro, com as vantagens assinaladas acima. MASON, Paul. Sete Chaves
para a Arbitragem na América Latina In Revista Brasileira de Arbitragem, nr. 3,(Jul/Ago/Set), Editora IOB, 2004, p77.
[7]
“Cláusulas de eleição de foro e arbitragem, inseridas num mesmo
contrato, são denominadas genericamente pela doutrina de cláusulas
combinadas.” Selma Ferreira Lemes: Cláusulas combinadas ou fracionadas:
arbitragem e eleição de foro. In. Revista do Advogado, Ano XXXIII, abril
de 2013, nr. 119, p.154
[8]
“Entendemos também ser possível classificar a previsão de eleição da
arbitragem e foro judicial num contrato como cláusula fracionada,
valendo-se de conceito emprestado do Direito Internacional Privado,
especialmente no âmbito dos contratos internacionais, denominado de
“dépeçage”, “morcellement” ou “fracionamento” no que concerne à escolha
da lei aplicável ao contrato e o princípio da autonomia da vontade.”
Selma Ferreira Lemes. Ob. Cit., p. 154
[9]
Lei 9.07/96: Art. 3º, § 1º A cláusula compromissória deve ser
estipulada por escrito, podendo estar inserta no próprio contrato ou em
documento apartado que a ele se refira.
[10]
Código Civil: Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim
na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de
probidade e boa-fé.
[11]
“Trata-se da circunstância de um sujeito de direito buscar favorecer-se
em processo judicial, assumindo conduta que contradiz outra que a
precede no tempo e assim constitui um proceder injusto e portanto
inadmissível (STIGLITZ, 1990, p.491).” Sílvio de Salvo Venosa. Código
Civil Interpretado. Editora Atlas, 2011, p.509
[12]
Superior Tribunal de Justiça (STJ). Corte Especial. Decisão
Monocrática. J. 29.6.2012. Reclamação nr. 9.030-SP. Min. Rel. Fátima
Nancy Andrighi.
[13] Superior Tribunal de Justiça (STJ). Segunda Seção. J. 08.05.2013. CEBSA vs. S E Ltda., Min Rel. Fátima Nancy Andrighi