Um quadro do pintor modernista Jacek Malczewski, intitulado Melancholia (clique aqui para ver: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Malczewski_melancholia.jpg),
é uma das mais perturbadoras caracterizações de uma nação (e de seu
estado de espírito) já criadas por um artista plástico. Apesar das
limitações, e da grande perda de impacto, de sua visualização na internet, essa obra consegue capturar todo o sabor (acre) e o significado da palavra melancolia
para um povo humilhado, cujo território havia sido esquartejado entre
três potências (Prússia, Rússia e Áustria), e que não encontrava razões
para ter esperanças. Uma mulher, de vestes negras, pálida, encosta-se a
uma imensa janela, que está entreaberta e dá para uma vereda, com
árvores ao fundo. Ela é a própria expressão da melancolia.
Atrás dessa mulher, dentro do que seria uma sala (ou uma ala de
hospital, hospício ou quartel), estão crianças, camponeses famintos,
monges, soldados, armados ou não, mulheres, padres e aristocratas. Em
cada um deles, está a Polônia do século XIX. Ocupada, dividida, rebelde,
esfaimada, impotente em face de seus tirânicos senhores.
Essa
grande nação fora importantíssima na História europeia. Uma “república
monárquica”, uma estrutura política paradoxal, com reis eleitos, que
abrangia territórios atualmente pertencentes à Polônia, à Lituânia, à
Ucrânia, à Alemanha e à Rússia, a Polônia defendeu as fronteiras
orientais da Europa contra o Império Otomano. O rei polaco-lituano João
III Sobieski derrotou o Exército otomano na Batalha de Viena (1683),
encerrando o cerco à capital austríaca e iniciando o fim de quase 300
anos de avanço turco na Europa Oriental. Sua nobreza (Szlachta)
era desproporcionalmente maior do que a existente em outras nações. A
ascensão social era algo ordinário, seus membros orgulhavam-se dos
elementos democráticos que existiam no processo político da República
das Duas Nações (Polônia e Lituânia), além da tolerância religiosa.
A
Polônia entrou em decadência no século XVIII, tendo desaparecido como
estado-nação, esquartejada e dividida entre prussianos, russos e
austríacos. Somente após a Primeira Guerra Mundial a Polônia renasceu
como uma república autônoma, tendo de vencer os exércitos soviéticos em
1920 e confirmar seu novo status político internacional. A
história desse país manteve sua sina trágica com a invasão russo-alemã
em 1939. Sua heroica cavalaria de lanceiros e ulanos foi destroçada
pelas divisões blindadas dos inimigos. A elite militar, política,
religiosa e universitária conheceu o extermínio durante a ocupação. O
massacre da floresta de Katyń (transformado em filme pelo
cineasta Andrzej Wajda, que recebeu o Oscar de 2007, como melhor
película estrangeira) é considerado uma tragédia nacional e um símbolo
da tentativa de aniquilar a Polônia. Apesar da bravura dos oficiais
poloneses, a serviço dos Aliados, o país tornou-se um satélite da antiga
União Soviética até 1989, quando a oposição liderada por Lech Wałęsa,
do sindicato Solidariedade, empolgou o poder e venceu eleições
democráticas, com o apoio fundamental do papa polonês João Paulo II. A
Polônia hoje é uma democracia, integrante da União Europeia, com moeda
própria e um virtuoso processo de crescimento econômico, apesar da crise
mundial.
Os vínculos do Brasil com a Polônia são perceptíveis, em
larga medida, graças à imigração ocorrida desde meados do século XIX e
até o final do século XX. A colônia polonesa é expressiva no estado do
Paraná. Na década de 1920, ocorreu uma onda migratória de judeus
poloneses, que se radicaram em São Paulo. Esse grupo também se dirigiu
para o Rio de Janeiro e foi ampliado nas duas décadas seguintes por
judeus poloneses, quase todos fugindo da perseguição nazista. Os laços
diplomáticos são excelentes e cada vez mais brasileiros se encantam ao
descobrir as belezas naturais e históricas dessa antiga nação do Leste
Europeu. As dificuldades da língua, no entanto, impedem uma maior
aproximação cultural, especialmente no campo jurídico, dada a
necessidade do rigor terminológico e da precisão de linguagem nas
traduções.
Um campo de investigação muito relevante para se conhecer o Direito polonês encontra-se em seu Direito Civil.
Muito
bem. O Direito Civil da Polônia é marcado por três fortes influências: a
suíça (o famoso Código Federal de Obrigações), a alemã (parte
significativa do atual território polonês pertenceu à Alemanha ou foi
por ela ocupado) e francesa, o que remonta às guerras napoleônicas e ao
forte interesse desse imperador pela independência da Polônia. É curioso
observar que, até à (re)fundação da República em 1918, os territórios
poloneses submetiam-se a 5 diferentes regimes jurídico-cíveis: a) o
Código Civil alemão; b) o Código Civil francês; c) o Código Civil
austro-húngaro; d) o Direito feudal russo; e) o Direito consuetudinário e
estatutário húngaro.
O processo de codificação do Direito Civil
polonês ocorreu de maneira paulatina ao longo do século XX. Sob a
influência do Código Federal de Obrigações da Suíça, em 1933,
promulgou-se o Código de Obrigações. No ano seguinte, editou-se o Código
Comercial. Nesse período, governava o país o marechal de campo Józef
Klemens Piłsudski, herói da resistência polonesa à invasão soviética de
1920.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o governo polonês no
exílio (legítimo representante da soberania nacional) e seus
representantes nacionalistas no território ocupado, que lideraram o
levante de Varsóvia, foram traídos e o país caiu sob o domínio
soviético, que entregou a Polônia a um governo fantoche e, nos anos
1950, a Władysław Gomułka, sob cuja administração aprovou-se o Código de
Família de 1950. Em 1964, publicou-se o Código Civil e o Código de
Família e Guarda, ambos em vigor a partir de 1º de janeiro de 1965.
A
queda do regime comunista em 1989 deu início a uma série de reformas na
legislação civil. O Código de 1964 foi profundamente alterado em 1990,
com a introdução de novas regras nos Direitos Reais, o que se justifica
pela extinção do regime comunista de propriedade.
Outro fator que
tem impulsionado reformas contínuas na legislação civil é a integração
da Polônia na União Europeia. A internação de diretivas europeias fez
com que se aprovassem novas leis sobre: a) serviços turísticos (1997);
b) responsabilidade civil (2000); c) cláusulas abusivas e contratos de
consumo (2000); d) contrato de time sharing (2000); e) contratos de crédito ao consumidor (2001); e) garantias nos contratos de consumo de compra e venda (2002).[1]
O
Código Civil de 1964, com várias partes derrogadas ou alteradas,
permanece em vigor, apesar de uma Comissão Independente de Codificação
do Ministério da Justiça haver elaborado propostas para a reforma total
desse código (e de outras leis polonesas). A estrutura do código polonês
é tributária do modelo pandectista do Código Civil alemão. Ele
divide-se em uma parte geral (livro 1) e uma parte específica que
compreende os Direitos Reais (livro 2), o Direito das Obrigações (livro
3) e o Direito das Sucessões (livro 4). O Direito de Família é objeto de
código setorial. Importantes áreas como Propriedade Intelectual,
Direito Autoral, Direito Societário, Direito Securitário; Títulos de
Crédito e Direito da Locação Predial sujeitam-se a normas extravagantes.[2]
A
Parte Geral do Código Civil polonês apresenta estrutura muito
semelhante a do Código Civil brasileiro, seja quanto à organização das
normas, seja quanto a seu conteúdo.[3]
As
pessoas são divididas em naturais e jurídicas. O marco do início da
personalidade do homem é o nascimento. A lei estabelece a presunção do
nascimento com vida (art. 9º). A maioridade civil, à semelhança de nosso
direito, ocorre aos 18 anos ou com o casamento (art. 10). Resolvendo
uma polêmica questão doutrinária que existe no Brasil, o Código polonês
prevê que, se o casamento for anulado, não haverá prejuízo à maioridade
advinda do matrimônio (art. 10, § 2º). São absolutamente incapazes os
menores de 13 anos (art. 12), além dos doentes mentais, os que
apresentem retardo ou transtorno mental, os alcoólatras e os drogadidos,
que não consigam, em razão do vício, controlar seus próprios atos (art.
13).
Os direitos da personalidade, que foram positivados no
Código Civil de 2002, são referidos em dois dispositivos do Código da
Polônia (arts. 23 e 24). Eles compreendem o direito à saúde, à liberdade
de consciência, ao nome e ao pseudônimo, à imagem, ao sigilo de
correspondência, à inviolabilidade do domicílio, ao trabalho científico
ou artístico e às patentes e invenções. A tutela dos direitos da
personalidade poderá ser preventiva, repressiva ou ressarcitória. No
caso da reparação de danos, o dinheiro poderá reverter para a vítima ou
para uma finalidade social específica. A proteção aos direitos da
personalidade não prejudica eventuais pretensões fundadas, em caráter
específico, em outras normas, como as relativas aos direitos de autor e
de patente.
O conceito de domicílio também é muito próximo do
Direito brasileiro: é o lugar da residência da pessoa com o ânimo de
permanência (art.25). No entanto, só se admite a hipótese de um único
domicílio pessoal (art. 28).
Consideram-se dotados de
personalidade jurídica os entes coletivos que hajam sido registrados
(art. 35). A Polônia segue, nesse campo, a teoria do órgão (art. 38). Os
entes não registrados estão admitidos a exercer algumas prerrogativas
jurídicas, embora não detenham capacidade plena (art. 33).
É
interessante que o Código Civil polonês, graças a alterações
legislativas, define o consumidor e o empresário (art. 43, acrescido, e
seguintes) em sua Parte Geral, no que se aproxima, em relação ao
primeiro, do exemplo alemão pós-reforma de 2002, que introduziu normas
de Direito do Consumidor no texto do BGB. O consumidor é qualquer pessoa
natural que não age profissionalmente em suas relações (art. 22,
acrescido). Os poloneses, também em conformidade com os alemães e
diferentemente dos brasileiros, restringem o conceito de consumidor às
pessoas naturais.
No que se refere à teoria do negócio jurídico,
fica evidente a similaridade das categorias do Direito polonês com os
esquemas pandectistas, que até hoje influenciam o Direito Civil
brasileiro. Assim, a declaração de vontade há de ser livre, séria (o que
afasta o animus jocandi e a reserva mental) e compreensível. É
também previsto um regime específico para os defeitos dos negócios
jurídicos, que podem ser considerados nulos ou anuláveis, ao reverso da
hipótese genérica de anulabilidade presente no Direito brasileiro para
essas figuras. O erro, o dolo e a coação contaminam os negócios e podem
dar margem a sua anulabilidade.
A prescrição é objeto do último
título da Parte Geral. Seu prazo ordinário é de 10 anos, embora existam
prazos específicos para relações contratuais de trato sucessivo (3 anos)
e para a responsabilidade delitual, que é de 3 anos (arts.119-120).
Neste último caso, há um complexo sistema para se caracterizar o início e
a extensão desse lapso: a) seu termo início conta-se da data em que o
autor tomou conhecimento do dano e de sua autoria; b) no entanto, esse
período não pode ser maior que 10 anos, contados da data em que o dano
ocorreu; c) se o dano resultou de um crime ou de uma contravenção penal,
a pretensão extingue-se após o decurso de 20 anos, contados a partir da
data do ilícito, independentemente do momento no qual a vítima dele
tomou ciência ou soube quem era o responsável por sua prática (art. 442,
acrescido).
O relatório da Comissão Independente de Codificação
do Ministério da Justiça, em uma passagem que guarda profundo interesse
para os debates atuais sobre o Direito Civil brasileiro, afirma que “a
essência do Direito Civil deve finalmente ser vista sob a perspectiva da
divisão fundamental do sistema jurídico em Direito Privado e Direito
Público. Por razões ideológicas, essa divisão foi questionada na
doutrina comunista, e foi largamente ignorada no exame do Direito Civil
durante o período da República Popular da Polônia. (...) Essa tradição
remonta à República Romana. De acordo com Ulpiano, publicum ius est
quod ad statum rei Romanae spectat, privatum quod ad singulorum
utilitatem: sunt enim quaedam publice utilia quaedam private (D. 1,1,1,2).”[4]
E
prosseguem os proponentes da nova codificação polonesa, em clara defesa
da separação conceptual e principiológica entre o Direito Privado e o
Direito Público:
“A despeito das crescentes intervenções do Estado
nas relações de Direito Civil, a divisão público-privado do sistema
jurídico é ainda aplicável. Esse entendimento é defendido nos escritos
de Franz Bydlinski [respeitado professor austríaco da Universidade de Viena, falecido em 2011],
que mostram que o Direito Privado é a lei que rege as relações sociais
entre indivíduos, e que, em certo sentido, é a sua própria lei, algo
muito distante do Estado. Essa forma de pensamento é muito similar ao
entendimento polonês de E. Łętowska, que acredita que o âmbito do
Direito Civil é autorreferente e que, geralmente, opera sem qualquer
necessidade de envolvimento do Estado. (...) A doutrina do Direito
Civil, agora emergente na República da Polônia, está retornando ao
conceito de Direito Civil, que foi abandonado durante o período da
República Popular da Polônia. Tal entendimento já foi incorporado aos
livros didáticos e tem sido aceito pelo Tribunal Constitucional”.[5]
Aos
leitores que se interessaram por uma coluna escrita sobre o Direito
polonês e que chegaram até seu final, creio que encerram essa leitura
com o sentimento de admiração por haver tantas semelhanças estruturais e
de conteúdo com o Direito Civil brasileiro. O estudo comparado permite
essa agradável descoberta, ainda que por acesso aos textos estrangeiros
mediante o concurso do latim de nosso tempo (a língua inglesa). E,
especificamente no que se refere ao Direito Civil, dá ensanchas a que se
perceba o efeito de mais de dois mil anos da tradição civilística. Em
um país tão antigo como a Polônia, com uma história tão rica e plena de
sucessos e tragédias, com idioma totalmente diverso do português,
desenvolveu-se um sistema jurídico-privado com enormes semelhanças ao
existente no Brasil, uma nação de “apenas” quinhentos anos. Não é vulgar
manter-se insensível ante a contemplação do Direito Civil e da beleza
de seus fundamentos clássicos.[6]
[1] WOJEWODA, Michał. Introduction to Private Law. University of Łódź. Disponível em www.ejcl.org/112/greenbookfinal-2.pdf. Acesso em 21-5-2013.
[2] WOJEWODA, Michał. Op. cit. loc. cit.
[3]
As referências aos artigos do Código Civil da Polônia foram extraídas
de sua versão em inglês, apresentada em: LASOK, Dominik (Ed). Polish Civil Law. Netherlands: University of Leyden, 1975, com o necessário cotejo com as normas supervenientes, disponíveis em: http://www.lexadin.nl/wlg/legis/nofr/eur/lxwepol.htm. Acesso em 21-5-2013.
[4] RADWAŃSKI, Zbigniew (ed). Green paper: an optimal vision of the Civil Code of the Republic of Poland. Warsaw: Ministry of Justice, 2006. p. 9.
[5] RADWAŃSKI, Zbigniew (ed). Op. cit. p. 10
[6]
Dedico esta coluna aos amigos Monika Wałachowska (Universidade Mikołaja
Kopernika) e Marek Swierczynski, professores poloneses, colegas de
estágio pós-doutoral no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht, de Hamburg, Alemanha (2011-2012).