Nos
últimos meses, as principais agências reguladoras de transportes estão
preocupando-se com a regulamentação do pedágio eletrônico no Brasil —o
modelo já conhecido de stop & go. A evolução tecnológica caminha em direção à automatização da cobrança e, em um futuro próximo, para um sistema free flow,
ou seja, a cobrança de pedágio sem barreiras, por pórticos instalados
nas rodovias ou grandes avenidas (no caso de pedágio urbano).
Uma das questões jurídicas que, em geral, não são comentadas quando se inclui na discussão o sistema free-flow
é com relação às garantias pelo não pagamento do pedágio. Isso porque a
ideia, sob o aspecto tecnológico, é ainda inovadora no Brasil. Mas a
questão nuclear é que o ordenamento jurídico não acompanha essa evolução
no mesmo passo, em que pesem as diversas tentativas no Brasil e em
outros países, conforme se verá.
Atualmente, o risco do não
pagamento da tarifa pelo usuário é suportado pelo concessionário. Não
há, contratual ou legalmente, um sistema de garantias jurídicas contra a
evasão do pedágio. Por outro lado, o artigo 209 do Código de Trânsito
Brasileiro (CTB) prescreve que tal conduta é uma infração de trânsito,
resultante em multa e pontuação na Carteira de Habilitação Nacional do
motorista infrator; todavia, tudo depende da autuação da autoridade
policial competente, dado que, no direito administrativo brasileiro, os
empregados das concessionárias não têm poder de polícia e nem são
credenciados pelas autoridades a fim de iniciar a instrução do
procedimento de autuação. Isso é um anacronismo dentro da nossa
doutrina, mas que, tamanha sua importância, deve ser tratado em outra
oportunidade.
Merece registro, de outra sorte, iniciativas como o
Sistema Nacional de Identificação Automática de Veículos (Siniav),
concebido pela Resolução Contran 212/2006, a qual regulamentou a Lei
Complementar 121/2006, que criou o Sistema Nacional de Prevenção,
Fiscalização e Repressão ao Furto e Roubo de Veículos e Cargas. O Siniav
prevê a instalação de placas eletrônicas nos veículos, antenas
leitoras, centrais de processamento e sistemas informatizados para
posterior identificação do veículo pelas autoridades competentes. Se
implantado, o Siniav pode ser sobremaneira útil à implantação do free flow em todo território nacional, facilitando as questões técnicas que envolvem a sua aplicação.
Apesar
dessa iniciativa, o fato é que —repise-se— não existem garantias
jurídicas ao concessionário caso o usuário não pague a tarifa e burle o
sistema de cobrança, ficando as concessionárias dependentes da atuação
das autoridades policiais. No sistema de pedágio por barreira, a
fiscalização é mais facilitada em razão da própria barragem física na
pista, o que aumenta o cumprimento (enforcement) das obrigações jurídicas concernentes ao pagamento da tarifa. No sistema stop & go,
no qual o usuário utiliza uma etiqueta eletrônica que libera a cancela
por aproximação do veículo, a tarifa é cobrada posteriormente em uma
fatura, o que já fragiliza um pouco o enforcement pelo usuário — mas que, culturalmente, tem sido bem aceito pela população brasileira.
No sistema free flow,
no qual não há cancelas, o risco de o usuário simplesmente circular por
rodovias, passando pelos pórticos sem a etiqueta eletrônica, é enorme
—ainda mais considerando a falta de experiência no Brasil, com essa
tecnologia, em relação ao enforcement pelos usuários. Pode ser
que as polícias rodoviárias fiscalizem, por meio de câmeras, e detenham
os infratores para impor-lhes multas; entretanto, em um contexto no qual
quase metade da frota paulista de automóveis circula irregularmente,
sem o devido pagamento do IPVA, não se pode ter a certeza de que a
fiscalização será 100% efetiva —ou que, ao menos, aproxime-se dessa
cifra.
Em qualquer lugar do mundo, a implantação do sistema free flow
vem acompanhada de garantias jurídicas pelo não pagamento da tarifa de
pedágio pelo usuário infrator. Na Áustria, no caso de não pagamento da
tarifa, há a previsão de um pedágio substituto (Ersatzmaut), não excedente a 250 €, consoante dispõe o parágrafo 19, Abs. 1, da Lei de Pedágios Federais de 2012 (Bundesstraßen-Mautgesetz 2012 — BStMG), o qual tem a função de desestimular o usuário a deixar de adquirir a Vignette (tag) antes de circular pelas rodovias — no país, há um sistema de pagamento prévio (Vignette,
muito semelhante ao extinto selo-pedágio) e posterior (por quilômetro
percorrido). Se o não pagamento se der em outras condições mais graves,
configura-se infração administrativa e a multa pode chegar a 3000 €
(parágrafo 20). A vinculação da receita das multas no país alpino
(parágrafo 24, Abs. 1 e 2 da BStMG) é um mecanismo
interessante e mais bem explorado do que o artigo 320 do CTB, o qual
prescreve que a receita das multas de trânsito será afetada e aplicada,
exclusivamente, em sinalização, engenharia de tráfego, de campo,
policiamento e educação de trânsito. Dependendo da origem da receita da
multa, um percentual é afetado à Asfinag (Autobahnen— und Schnellstraßen—Finanzierungs—Aktiengesellschaft, estatal responsável pela exploração rodoviária) e outra parte à autoridade local responsável pela sua aplicação.
O Chile é um dos países pioneiros no uso do free-flow
na América do Sul, com larga utilização na região ao redor de Santiago,
cujas rodovias fazem a função de um “rodoanel” da capital.
Inicialmente, havia uma previsão legal (artigo 40, Decreto MOP 900/1996)
de multa de quase quarenta vezes o valor do pedágio (mais juros e
gastos judiciais), a qual era revertida à concessionária. Tal
dispositivo, em um primeiro momento, serviu para incutir um senso de
responsabilidade na população — sobretudo pelo valor elevado da multa.
Posteriormente, esse artigo da lei de concessões começou a ser
questionado judicialmente: muitos magistrados, baseados na regra da
proporcionalidade, passaram a afastar o valor da multa. Isso acarretou
certa insegurança jurídica às concessões e às operadoras do sistema free flow e redundou, posteriormente, em alteração legislativa com a Ley
20.410/2010. Agora, o valor da multa é, no máximo, cinco vezes o valor
original e, em caso de reincidência, quinze vezes. E também o montante
não é revertido ao concessionário, mas sim em favor de um Fundo
Municipal Comum e da municipalidade responsável.
Em um segundo momento, os chilenos começaram a promover o enforcement
com outra medida: à semelhança do SPC e Serasa no Brasil, o motorista
inadimplente teria o seu registro fiscal compartilhado com instituições
financeiras e outros serviços de crédito, o que lhe impediria diversas
operações financeiras se fosse um mau pagador das tarifas de pedágio.
Essa regra passou a ser questionada em juízo em razão da violação da
privacidade dos usuários e os tribunais, como no caso anterior,
começaram a afastar a sua aplicação. O risco de inadimplência no
pagamento do pedágio voltou a crescer entre os santiaguinos.
Hodiernamente, o que sustenta o sistema free flow
no país andino é o senso moral de adimplemento na população, talvez
construído no início do sistema com as pesadas multas impostas pelo seu
descumprimento. Mas já se discute a criação de outro instrumento
jurídico que dê garantias jurídicas ao concessionário, o qual, como no
Brasil, depende de alteração legislativa ou contratual.
O Projeto
de Lei 6.857/2010, do deputado Carlos Zarattini (PT-SP), apensado ao PL
2.877/2011, previa a inclusão de um parágrafo segundo ao artigo 320 do
CTB, no sentido de que “A receita arrecadada com a cobrança da multa de
trânsito de evasão ao pagamento de pedágio, prevista no artigo 209, será
aplicada, no montante necessário, para o ressarcimento das perdas
causadas pela infração cometida às operadoras de vias pedagiadas, sem
prejuízo do disposto nos parágrafos anteriores”. O dispositivo sugerido
pelo deputado Zarattini abrangia, igualmente, as operadoras estatais de
rodovias com a referida garantia jurídica. No entanto, o parecer do
relator, deputado Hugo Leal (PSC-RJ), rejeitou a proposta, argumentando
que “[e]m princípio, acreditamos que os contratos de concessão deveriam
prever tal ressarcimento, introduzindo dispositivos compensatórios, que
incluíssem no cálculo do valor do pedágio percentual para cobrir esse
tipo de prejuízo.”
O problema é que nenhum dos contratos de
concessão de rodovias, atualmente, prevê um ressarcimento pelo não
pagamento da tarifa de pedágio, dado que sempre foi um risco exclusivo
do concessionário —já que pautado no modelo anterior de pedágio de
barreira, no qual não se vislumbrava um ambiente de rodovias free flow.
Outro ponto a ser observado é que nas minutas dos novos editais e
contratos para concessão de rodovias, tais como as da 3ª Etapa das
Concessões Rodoviárias Federais (Fase III), não se observam regras que
prevejam uma transição para o sistema do free flow em um médio
prazo, tampouco garantias jurídicas contratuais que mitiguem o risco da
inadimplência. Com isso, certamente a implantação do free flow
fica prejudicada. Seria o caso de incluir cláusulas nas minutas dos
novos editais para que facilite a transição ao Siniav, prevendo
garantias contratuais para que as novas concessões possam ser um projeto
piloto à implantação do free flow no país. Essa, embora não
seja a solução ideal —a qual, seguramente, dar-se-ia pela efetiva
alteração do artigo 320 do CTB —, já seria um bom começo.