O
presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa,
pautou para esta quarta-feira (20/2) o Recurso Extraordinário que
questiona a tributação de lucros auferidos por empresas estrangeiras
coligadas ou controladas por companhias brasileiras. É o RE 611.586,
em que a Coamo Agroindustrial Cooperativa pede que seja reformada
decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região que determinou a
tributação, com Imposto de Renda e Contribuição Social sobre Lucro
Líquido (CSLL), de lucro auferido por controlada pela Coama com sede em
Aruba, paraíso fiscal caribenho.
A empresa entrou com o RE porque o
TRF-4 considerou constitucional o artigo 74 da Medida Povisória
2.158-35/2001 — que afirma que os lucros das companhias coligadas ou
controladas por brasileiras no exterior devem ser tributados no momento
em que apurados no balanço. O dispositivo regulamenta o parágrafo 2º do
artigo 43 do Código Tributário Nacional.
Mas a Coama, e boa parte
do setor industrial, entende que o artigo 74 da MP é inconstitucional.
Defendem que os lucros devem ser tributados somente quando forem
distribuídos aos sócios no Brasil — quando a renda é efetivamente
disponibilizada.
O mesmo caso é tratado na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.588.
Nela, a Confederação Nacional das Indútrias (CNI) também ataca o artigo
74 da MP 2.158-35/01. Afirma que o dispositivo exige “imposto e
contribuição sobre situação que não configura renda ou lucro”,
confrontando o artigo 193 da Constituição. Também diz que a MP tributa
lucros acumulados em períodos anteriores à sua vigência, violando o
artigo 150 da CF.
Ambos os casos, a ADI e o RE pautado para esta
quarta, têm muito em comum. Tanto que a CNI, autora da ação de
inconstitucionalidade, foi aceita como amicus curiae no RE, para auxiliar a Coama.
Nos
dois casos, a União opinou pela constitucionalidade da Medida
Provisória. No caso do RE, também falou no acerto da decisão do TRF-4. A
Procuradoria-Geral da República não se manifestou no Recurso
Extraordinário, mas o ministro Joaquim Barbosa, relator do recurso,
juntou aos autos o parecer enviado pelo órgão à ADI.
Questões de fundo
Na opinião da tributarista Mary Elbe Queiroz, o que será de fato decidido pelo Supremo na quarta é quando o lucro se enquadra no conceito constitucional de renda. Em artigo publicado na revista Consultor Jurídico
nesta segunda-feira (18/2), ela explica que renda, para a Constituição,
é acréscimo patrimonial por meio de riqueza nova, e a lei não pode
tratar disso. “Porém, o momento da disponibilização da renda, para fins
de tributação, pode”, anotou.
Já o tributarista Maurício Faro,
do escritório Barbosa, Müssnich & Aragão, presidente da Comissão de
Direito Tributário da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro,
também em artigo publicado em agosto do ano passado na ConJur,
ataca o ponto pelo ângulo da concorrência. Defendendo o ponto de vista
dos contribuintes em seu texto, Faro afirma que a tributação brasileira
dos lucros de controladas ou coligadas no exterior prejudica a
competição de companhias nacionais fora do país.
O tributarista
escreveu que as empresas “são obrigadas a desembolsar caixa, para pagar
tributos, antes de deliberação de dividendos pela subsidiária no
exterior, e antes mesmo de haver certeza se, um dia, aquele lucro será
distribuído”.
Julgamento encaminhado
Outra coincidência importante entre as ações é a importância do ministro
Joaquim Barbosa. A ADI 2.588 está com resultado apertado: cinco votos
pela procedência, contando o da ministra Elen Gracie (aposentada) — que
votou pela inconstitucionalidade apenas da expressão “ou coligadas”, ou
seja, pela procedência parcial —, e quatro votos pela improcedência.
Votaram
pela procedência, além da ministra Ellen, os ministros Marco Aurélio,
Sepúlveda Pertence, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello. Contra a ADI,
votaram os ministros Nelson Jobim, Eros Grau, Ayres Britto e Cezar
Peluso. O ministro Gilmar Mendes se declarou impedido e não votará na
matéria. Ou seja: falta apenas o voto do ministro Joaquim Barbosa,
relator do Recurso Extraordinário pautado para esta quarta.
Mas,
dos nove ministros que já votaram, seis estão aposentados. As diferenças
de posicionamentos na configuração atual do Pleno são tantas que nem
tributaristas que acompanham o Supremo diariamente se arriscam a tentar
prever quem votará em que sentido. Não se sabe nem mesmo se o ministro
Gilmar Mendes vai se declarar impedido novamente.
Jurisprudência administrativa
Recentemente, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) proferiu decisão importante
sobre o tema. Deu ganho de causa à Gerdau em discussão com a Receita a
respeito de lucros auferidos por uma controlada na Espanha, a Gerdau GTL
Spain. A multa pretendida pelo fisco era de R$ 232 milhões.
O
Carf, órgão do Ministério da Fazenda, é a última instância
administrativa para discussões entre contribuintes e fisco federal. No
caso da Gerdau, a companhia passou por uma reorganização societária de
seus investimentos em outros países. Decidiu reintegralizar seu capital
na sua controlada espanhola, entregando ações e quotas de investimentos.
Com isso, o controle das empresas estrangeiras passou da Gerdau
Internacional para a Gerdau Spain.
No entendimento do fisco, a
companhia espanhola não tem nenhum propósito negocial, funcionando
apenas como uma repassadora de lucros com o intuito de evitar a
tributação no Brasil. Por um acordo entre Brasil e Espanha, os lucros
auferidos no país europeu por empresas brasileiras não são tributados e,
para a Receita, a manobra da Gerdau foi feita para burlar a legislação
brasileira, já que tudo funcionaria da mesma forma se a controlada
espanhola não existisse.
Mas o Carf entendeu que o fisco estava
aplicando o conceito de empresa funcional a uma holding, tipo de
companhia que, por definição, exige apenas a existência de alguns
conselhos e comitês para definir estratégias. O Carf afirmou que, mesmo
que o objetivo da operação fosse reduzir o pagamento de tributos, isso
não muda o fato de a companhia existir e operar. Muitos menos permite o
afastamento do tratado internacional.
Questão internacional
A União Europeia também está preocupada com o planejamento tributário de suas multinacionais. Em recomendação
enviada aos seus Estados-membros, a Comunidade Europeia afirma que
muitas empresas estão perpetrando o que chamou de “planejamento fiscal
agressivo”.
É justamente a prática de multinacionais registrarem
suas controladas ou coligadas em países cujas leis tributárias são mais
“flexíveis”. Evitam assim o pagamento de determinados impostos e afetam
diretamente a arrecadação dos países europeus — e o aumento da
arrecadação é o grande objetivo dos membros da Zona do Euro no momento
de crise econômica e financeira em que vivem.
A solução, que
inclusive será levada aos países integrantes da Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), é que seja criada uma
norma geral antiabuso (NGAA) aplicável a todos. O principal dessa regra
seria obrigar que a renda seja tributada. Os ganhos só seriam isentos em
um país se já houvesse tributação em outros — o de residência ou o de
destino dos capitais. Seria evitado o uso de paraísos fiscais para a
instalação de holdings, por exemplo.
Da academia
A ideia de uma regra geral antiabuso no planejamento tributário é
justamente o que defende a tese de pós-doutoramento da tributarista Mary
Elbe Queiroz, na Universidade de Lisboa. Ela afirma que o planejamento
tributário com intuito de pagar menos impostos é prática legítima de
todo contribuinte. Mas muitas empresas usam da premissa do planejamento
tributário para simular operações com empresas “de fachada”, apenas para
burlar as leis tributárias brasileiras.
Essa prática é o que a
advogada chama genericamente de abuso. Ela conta, na apresentação de sua
tese, que o Brasil ainda carece de uma legislação que reprima e puna o
abuso no planejamento tributário. E é daí que decorrem os conflitos
travados entre Receita Federal e contribuintes no contencioso
administrativo — a exemplo do caso da Gerdau no Carf.
“No
ordenamento jurídico brasileiro, contudo, ainda não existe qualquer
disposição de lei que alcance o abuso para enquadrá-lo como infração ou
conduta passível de rejeição. Não pode, desse modo, o respectivo combate
dar-se no âmbito discricionário, quer no âmbito do fisco, quer da
jurisprudência”, escreveu Mary Elbe.
A tributarista, então,
defende que não há mais como “a estrita legalidade” acompanhar as
transformações trazidas pela informatização e pela globalização na
análise casuística — ou na “hipótese da incidência”, como ela escreveu.
Por isso, ela defende a aprovação de uma norma geral, via Congresso.
“Não
pode o intérprete agir na ausência de lei para tentar enquadrar
condutas não previstas em hipóteses já existentes. Tudo tem de estar
expressa e rigidamente previsto em lei, sob pena de que os reflexos da
subjetividade pessoal criem mais incertezas e laborem contra a segurança
jurídica.”