A
Gerdau conseguiu, no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais
(Carf), tribunal do Ministério da Fazenda que julga contestações de
contribuintes contra autuações da Receita Federal, uma decisão que a
livrou de pagar R$ 232 milhões em Imposto de Renda e Contribuição Social
sobre o Lucro Líquido por lucros auferidos em 2010 por coligadas no
exterior. A decisão, proferida por maioria em outubro e ainda não
publicada, é da 1ª Turma da 1ª Câmara da 1ª Seção de Julgamento do Carf.
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ainda pode recorrer à Câmara
Superior de Recursos Fiscais. O acórdão deve ser publicado em fevereiro.
O caso estava suspenso desde abril por um pedido de vista. Segundo notícia divulgada à época pelo jornal Valor Econômico,
o conselheiro Valmar Fonsêca, presidente da 1ª Turma, afirmou que mesmo
sem a publicação da decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da
tributação de lucros no exterior de empresas vinculadas a brasileiras —
no Recurso Extraordinário 611.516, recebido com repercussão geral —, a
discussão sobre a Gerdau só seria suspensa se houvesse algum
posicionamento do Carf sobre o sobrestamento do caso.
Para os
conselheiros, como no RE em que o Supremo reconheceu a repercussão geral
do assunto não houve determinação expressa para que os demais processos
em outros tribunais fossem sobrestados, o Carf deveria "sempre se valer
da celeridade processual e evitar a prescrição de ação penal de crimes
contra a ordem tributária", o que justificou o prosseguimento do
julgamento.
O fisco federal autuou a Gerdau
Internacional Empreendimentos por causa da reorganização societária de
seus investimentos em outros países. A multinacional integralizou
capital em uma de suas controladas, a Gerdau GTL Spain, aberta na
Espanha, com entrega de ações e quotas de seus investimentos no
exterior. Assim, diversas empresas estrangeiras que antes eram
controladas pela Gerdau Internacional passaram a ser controladas
diretamente pela empresa espanhola — e indiretamente pela brasileira —,
tornando-a uma holding dos investimentos no exterior.
De
acordo com a Receita Federal, a Gerdau GLT passou a ser subsidiária
integral da Gerdau Internacional. Como a Gerdau GTL Spain é uma ETVE [Entidade de Tenencia de Valores Extranjeros],
não é tributada na Espanha. Para o fisco, como um acordo internacional
entre Brasil e Espanha proíbe a tributação do lucro no Brasil, o
rendimento acaba não sendo tributado. A alegação foi de que a empresa
espanhola não tem propósito negocial, sendo uma mera repassadora de
lucros, com o intuito de evitar a tributação no Brasil. Por isso, a
Receita concluiu que a reestruturação societária teve a intenção de
burlar a legislação brasileira, já que tudo funcionaria do mesmo jeito
se a holding espanhola não existisse.
O fundamento para a autuação
foi o abuso do tratado internacional e o fato de a legislação comercial
e tributária brasileira permitir, nesses casos, tributar diretamente o
lucro das empresas controladas indiretas e residentes no exterior. A
fiscalização usou o artigo 243 da Lei das Sociedades Anônimas — a Lei
6.404/1976 — para defender que a lei não diferencia controladas diretas
ou indiretas. Foi alegado que o artigo 74 da Medida Provisória 2.158-35,
de 2001 — que disciplina a tributação de lucros de coligadas e
subsidiárias no exterior —, alcança controladas diretas e indiretas.
Dessa forma, os lucros de todas as controladas se sujeitariam à
tributação, salvo quando a produtora do lucro estiver em país com
tratado. Além disso, segundo o fisco, os lucros das controladas da
Gerdau GTL Spain que atuam fora da Espanha — algumas em paraísos fiscais
— não estão protegidos pelo tratado com a Espanha.
A defesa da
empresa alegou que os tratados internacionais de bitributação têm
prevalência sobre regras internas; que a Gerdau GTL Spain tinha
autonomia para definir suas atividades e é a gestora das participações
internacionais do grupo, sendo gerida pelo seu conselho de administração
e, com os lucros que aufere, faz aquisições internacionais; que não há
base legal para desconsiderar a personalidade jurídica da Gerdau GTL
Spain e que o planejamento fiscal não é proibido. Segundo o recurso do
contribuinte, a reorganização, que colocou a empresa espanhola como
controlada da brasileira e de estrangeiras, bem como a constituição, os
negócios e as atividades da empresa espanhola, não violaram nenhum
dispositivo de lei. Segundo a empresa, o fato de a Espanha dispensar a
tributação dos lucros da empresa espanhola não afeta o que dispõe o
tratado firmado com o Brasil.
A Gerdau alegou ainda que o artigo
74 da Medida Provisória 2.158-35, de 2001, é inconstitucional e
contraria o tratado. A questão da cobrança de lucros de empresas
vinculadas com sede no exterior está sub judice no Supremo Tribunal Federal,
que ainda não decidiu sobre o assunto. A multinacional afirmou ainda
que não houve disponibilização de lucros e que a Receita Federal
desconsiderou a empresa espanhola sem informar a base legal para a
medida. Segundo a companhia, não há norma que autorize o fisco a aplicar
o conceito de abuso de direito.
Conceito extrapolado
Os argumentos do fisco foram rejeitados por unanimidade pelos
conselheiros do Carf. Já os da empresa foram aceitos por maioria,
vencida a relatora, Edeli Bessa. Segundo ela, os lucros das controladas
pela holding espanhola deveriam ser considerados da empresa brasileira
porque a estrangeira não demonstrar ter movimentação financeira.
Autor
do voto que abriu a divergência, o conselheiro Carlos Eduardo de
Almeida Guerreiro esclareceu que a própria fiscalização reconheceu que a
empresa espanhola é uma holding, razão pela qual não se poderia esperar
que existam funcionários e instalações compatíveis com empresas
operacionais — como exigiu a fiscalização. O razoável, disse o
conselheiro, é que uma holding funcione com alguns comitês e conselhos
tomando decisões e com a estrutura enxuta.
Segundo ele, embora
seja provável que a estrutura identificada pela fiscalização tivesse
como objetivo a economia fiscal, não é possível tomar como verdade a
afirmação de que foi esse o único objetivo para criar a empresa
espanhola. Para ele, o fato de a fiscalização e o contribuinte
informarem que a holding faz aquisições de empresas em outros países e
que traça suas linhas estratégicas enfraquece a tese de que o único
objetivo é a economia fiscal.
Mesmo que o objetivo da operação
societária fosse reduzir tributos, de acordo com Guerreiro, isso não
mudaria o fato de que a empresa existe e nem permitiria que o tratado
internacional fosse afastado. Ou seja, ainda que a empresa seja uma
chamada treaty shopping — empresa aberta unicamente com o
propósito de se beneficiar de um tratado de bitributação —, não há como
deixar de aplicar as regras do tratado.
Segundo o conselheiro, a
partir de uma base “tão instável” como a avaliação subjetiva dos
objetivos da empresa, não é possível desconsiderar o tratado e a
personalidade da empresa espanhola. Para ele, mesmo se existisse uma
regra que permitisse afastar o tratado por conta de eventual
planejamento tributário, a solução não seria buscar diretamente o lucro
das controladas indiretas, mas sim verificar o lucro da holding
espanhola.
Guerreiro acrescentou ainda que o planejamento fiscal
não é proibido e que a previsibilidade da tributação não pode ser
afetada por juízo de abuso de direito da fiscalização. Segundo ele, não
há base no sistema jurídico brasileiro para o fisco afastar incidência
de lei, sob a alegação de haver abuso.
Com relação ao fundamento
da autuação de que a legislação brasileira permite tributar diretamente o
lucro das controladas indiretas residentes no exterior, o conselheiro
afirma não ser possível entender que toda menção à controlada se refira
também às controladas indiretas, isso porque, segundo ele, sem uma
ressalva semelhante à existente no artigo 243 da Lei das Sociedades por
Ações, a interpretação de “controlada” é “controlada direta”. O
dispositivo, em seus parágrafos 1º, 2º, 4º e 5º, afirma que “são
coligadas as sociedades nas quais a investidora tenha influência
significativa”; que “considera-se controlada a sociedade na qual a
controladora, diretamente ou através de outras controladas, é titular de
direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância
nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos
administradores”; que “há influência significativa quando a investidora
detém ou exerce o poder de participar nas decisões das políticas
financeira ou operacional da investida, sem controlá-la”; e que “é
presumida influência significativa quando a investidora for titular de
20% ou mais do capital votante da investida, sem controlá-la”.
Segundo
Guerreiro, não é possível supor que o termo “controlada” possa alcançar
as diretas e as indiretas, porque o resultados das controladas
indiretas já estão refletidos nas controladas diretas — razão pela qual,
para se considerar diretamente o lucro das controladas indiretas, seria
necessário desconsiderar o lucro das diretas.
O conselheiro
Marcos Takata, convocado para julgar na 1ª Turma, acompanhou a
divergência. Ele afirmou que fará declaração de voto. No julgamento,
adiantou que concordou com a conclusão do voto de Guerreiro, mas apenas
em relação à desnecessidade de substância negocial para holdings. Para
ele, as holdings, por definição, são instrumentais, formas de
organização de investimentos, em participações societárias, que
prescidem de "substância" ou de estruturas materiais — sejam elas no
Brasil ou no exterior.
Mas ele divergiu quanto ao uso dessas
empresas para se aproveitar de tratados — o que acabou não alterando o
resultado do julgamento, que parou na primeira questão. Segundo ele, a
interpretação finalística dos tratados interditaria seu uso para as
chamadas "treaty shoppings" e "conduit companies" — empresas "canais".
Ele lembrou que os Comentários da OCDE, que orientam a interpretação dos
tratados, vão no mesmo sentido.
Processo 16643.000276/2010-42