NOTÍCIA

Informatização da Justiça exige empenho e cautela

Processo digital

Informatização da Justiça exige empenho e cautela

por Bruno Aronne

Não é de hoje o grave problema da ineficiência da Justiça. Em 1895, o austríaco Franz Klein já propugnava a diminuição dos formalismos processuais, bem como as idéias da economicidade, da celeridade e do acesso dos mais pobres à Justiça, com o nobre intuito de melhorar a prestação jurisdicional. Aliás, essas propostas foram incorporadas ao Código Processual Austríaco (ZPC — Zivilprozessordnung) daquele mesmo ano e muitos países, depois, copiaram seus dispositivos.

Já nos anos 60[1], Mauro Cappelletti liderou um significativo movimento para diagnosticar as causas da ineficiência da Justiça[2]. O conjunto desse trabalho é conhecido como Projeto Florença e os principais resultados foram expostos na obra Acesso à Justiça[3]. Nesse livro, constata-se a preocupação dos autores com o problema do acesso dos indivíduos mais pobres ao Poder Judiciário, à respectiva representatividade, por meio de advogados públicos ou privados, bem como a uma decisão justa e efetiva.

Verifica-se, também, o incentivo à adoção de políticas públicas e judiciárias voltadas para a tutela dos direitos difusos e coletivos, assim como o estímulo à solução alternativa de conflitos e à reestruturação (através da especialização das varas e funções) ou criação de novos tribunais (juizados de pequenas causas, por exemplo).

A Justiça brasileira também sofre, há bastante tempo, com o problema da ineficiência, especialmente na questão do acesso à Justiça, tanto no que diz respeito à representatividade e aos custos, como no que tange ao tempo de duração do processo. Assim é que, no Brasil, podemos elencar, como exemplo da influência do Projeto Florença[4], na busca de maior amparo aos direitos materiais e de maior efetividade aos direitos processuais, a edição das Leis 7.347/85 (Ação Civil Pública), 9.099/95 (Juizados Especiais Estaduais), 0.259/01 (Juizados Especiais Federais) e 9.307/96 (Arbitragem).

Como é cediço, apesar de úteis em vários aspectos, tais reformas não operaram os resultados esperados e o aparelho judiciário brasileiro permaneceu acometido pelos antigos e por novos defeitos. Nos últimos anos, com os fins de eliminar os entraves burocráticos[5] do seu respectivo código e de conferir uma prestação jurisdicional mais célere e efetiva, o processo civil pátrio sofreu verdadeira onda renovatória legislativa.

Entre as reformas mais recentes, destacam-se aquelas oriundas da Emenda Constitucional 45, de 8 de dezembro de 2004, e do Pacto de Estado em favor de um Judiciário mais rápido e republicano, como as Leis 11.232/05 (Cumprimento de sentença), 11.382/06 (Execução de título extrajudicial), 11.417/06 (Súmula Vinculante), 11.418/06 (Repercussão Geral no Recurso Extraordinário), 11.341/06 (Demonstração da divergência no Recurso Especial), 11.419/06 (Informatização do processo judicial), 11.441/07 (Inventário, partilha, separação consensual e divórcio por via administrativa) e 11.448/07 (Legitimidade da Defensoria Pública para a ação civil pública).

A mencionada Lei 11.419/06, que trata da informatização do processo judicial, entrou em vigor no dia 20 de março de 2007, alterando alguns artigos do Código de Processo Civil e regulamentando, de maneira geral, o processo eletrônico. Esse novo diploma abarca 22 artigos e já provoca muita polêmica no meio jurídico, o que não é nenhuma surpresa. Afinal, essa lei estabelece uma considerável mudança de paradigmas aos operadores do processo judicial, na medida em que regulamenta o uso da assinatura digital nos tribunais, os prazos até meia-noite, a intimação e a citação por meio eletrônico, o Diário de Justiça eletrônico, entre outros assuntos novos e instigantes.

A proposta legislativa de informatização do processo judicial colimava aprimorar a eficácia dos procedimentos judiciais, “principalmente no que diz respeito à sua celeridade e à economia, que beneficiará tanto o poder público, que arca com o funcionamento da máquina judiciária, quanto à parte, no que diz respeito aos custos processuais”[6].

Portanto, o que se percebe com clareza é o intuito de amenizar o problema da ineficiência da Justiça, elevando a qualidade e acelerando a prestação jurisdicional[7], tornando-a, simultaneamente, menos dispendiosa às partes, aos operadores do Direito e ao próprio Estado.

Esses resultados podem ser alcançados? Sim, podem, mas é preciso cautela[8], a uma, porque se trata de novidade que transformará o meio de tramitação do processo e, por isso, a transição deverá ser feita a passos curtos; e, a duas, porque alguns princípios processuais sofrerão reflexo direto da nova sistemática, o que reclama a investigação desse impacto tecnológico, para evitar um retrocesso na constante busca pelo processo justo.

Os princípios processuais

Princípio[9] é um ponto de partida. Os valores jurídicos, tais como a Justiça, a dignidade da pessoa humana e a eqüidade, por exemplo, são idéias abstratas, supraconstitucionais, que informam e permeiam todo o ordenamento jurídico, mas não se traduzem em linguagem normativa. A seu turno, os princípios representam o primeiro estágio de concretização dos valores jurídicos a que se vinculam. Como afirma Ricardo Lobo Torres, os princípios, sendo enunciados genéricos que quase sempre se expressam em linguagem constitucional ou legal, estão a meio passo entre os valores e as normas na escala de concretização do direito e com eles não se confundem.[10]

Há renomados autores[11] que classificam os princípios e as regras como espécies do gênero norma, sendo que a diferença reside no âmbito de aplicação de cada um: a regra se aplica a aspectos pontuais e os princípios, a situações mais elásticas. Citando Robert Alexy, Luiz Guilherme Marinoni[12] ressalta que um mesmo princípio pode valer para um caso e não valer para outro, o que não significa que, nesta hipótese, tenha perdido sua vigência. Além disso, em determinadas circunstâncias, dois princípios podem entrar em choque, o que opera a aplicação do princípio da proporcionalidade, para definir aquele que vai se soprepor no caso concreto. De qualquer forma, o princípio não aplicado também não perde suas força e vigência.

No Brasil, os princípios possuem uma função normativa plena, por força do disposto no parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição Federal, segundo o qual “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Desse modo, a falta de norma infraconstitucional que regulamente o gozo ou exercício de direitos ou garantias fundamentais não pode servir de pretexto para a sua denegação[13].

Existem princípios gerais no ordenamento jurídico brasileiro, mas também existem princípios específicos para cada ramo da ciência jurídica. O direito processual civil dispõe de um rol extenso de princípios, alguns com aplicação restrita e outros com desdobramento até em outras áreas.

No que respeita aos princípios processuais, Luiz Fux salienta que os princípios fundamentais do processo, assim como os das demais ciências, caracterizam o sistema legal adotado por um determinado país, revelando-lhe a linha juspolítica e filosófica. Esses princípios são extraídos das regras processuais como um todo e seus cânones influenciam na solução de inúmeras questões legisladas ou não, quer na exegese emprestada a determinado dispositivo, quer na supressão de uma lacuna legal. Entre nós, os princípios do processo, como, v.g., o da igualdade das partes, o do contraditório, o do devido processo legal, seguem o espírito democrático que norteia a nossa lei maior e são diretrizes para a interpretação das normas processuais.[14]

Nessa mesma linha, Candido Rangel Dinamarco[15] sublinha que o zelo aos princípios evita a interpretação jurídica cega, no labirinto de normas e atos processuais. Assim, os princípios funcionam como um porto seguro, não somente de partida, mas também de instrumento de esclarecimento, especialmente para se traçar o rumo da aplicação normativa a uma determinada situação concreta, seja ela regulamentada, ou não, por uma regra específica.

Esses princípios também são considerados como garantias processuais, as quais devem ser respeitadas e tuteladas, com o fim de se disponibilizar um processo justo às partes e aos operadores do Direito, na atividade jurisdicional. Leonardo Greco[16] desenvolveu um estudo em que essas garantias estão divididas em individuais[17] e estruturais[18], sendo que grande parte delas corresponde justamente a princípios constitucionais processuais, que informam o ideal do processo justo[19]. Por conseguinte, a violação a esses princípios consiste em grave retrocesso na linha evolutiva do processo civil contemporâneo.

Importa destacar que, muitas vezes, são as próprias reformas processuais que violam os princípios. Como é cediço, reformas legislativas costumam tentar resolver um problema pontual (e até resolvem). Mas, pela falta de investigação prévia de seus efeitos, criam uma outra barreira à efetividade processual e, em algumas circunstâncias, acabam por violar princípios processuais. Nesse contexto, José Carlos Barbosa Moreira[20] propõe que as reformas da lei processual sejam precedidas do diagnóstico dos males que se quer combater e das causas que o geram ou alimentam, para evitar que as incessantes reformas, ainda que resolvam um problema aqui, criem outro acolá.

A Lei 11.419/06 procurou otimizar a tramitação do processo, prometendo a diminuição da burocracia cartorária e do tempo de duração da ação; a redução dos custos de acompanhamento de uma causa; e uma maior acessibilidade aos autos, entre outras vantagens.

Contudo, na esteira da proposta de José Carlos Barbosa Moreira, não se deve acreditar cegamente nesses resultados. Antes, é preciso avaliar o impacto que a informatização judicial poderá causar a determinados princípios do processo civil, como medida de aprimorar as conseqüências benéficas do novo sistema e evitar os seus efeitos maléficos.

A presente análise se restringe a apenas alguns princípios do processo civil, uma vez que nem todos sofrem reflexo direto da informatização judicial.

O impacto da informatização judicial sobre os princípios do processo cilvil

A Lei 11.419/06 não operou uma transformação radical no Código de Processo Civil, tendo em vista que os prazos, as ações, os recursos, os procedimentos, etc., permanecem os mesmos[21]. Em verdade, esse diploma legal encaixou a possibilidade do uso do meio eletrônico em todos os artigos em que o seu uso é possível, além de ter regulamentado, de forma geral, o processo total ou parcialmente eletrônico.

Assim, a informatização judicial não repercutirá diretamente sobre a maioria dos princípios do processo civil. Todavia, é inegável que, em razão das características e necessidades do uso do meio eletrônico, alguns princípios serão diretamente atingidos, positiva ou negativamente, tudo a depender dos cuidados na implantação e na operacionalização do novo sistema.

O impacto da informatização judicial sobre o princípio do acesso à justiça

A expressão acesso à Justiça é vaga e comporta diferentes significados, até porque o termo Justiça possui diferentes acepções, como, por exemplo, o ideal de dar a cada um o que é seu; uma ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano; o Poder Judiciário, etc.. O princípio do acesso à Justiça tem um sentido muito mais abrangente do que a simples possibilidade de um indivíduo acessar o Poder Judiciário e propor uma ação ou então se defender. Consoante o entendimento doutrinário hodierno, a problemática do acesso à Justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa [22].

A expressão “acesso à ordem jurídica justa” vem sendo usada para definir o princípio do acesso à Justiça. Cumpre ressaltar que essa perspectiva axiológica não se limita apenas a garantir meios idôneos e com custos módicos àquele que propõe e àquele que se defende na demanda. Atualmente, o ordenamento jurídico e os operadores do Direito devem promover e preservar uma série de garantias e princípios que, em conjunto, constroem essa ordem jurídica justa.

Na obra Teoria Geral do Processo[23], Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Candido Rangel Dinamarco, eméritos processualistas brasileiros, apontam a utilidade das decisões e o ingresso em juízo como alguns dos pontos sensíveis do acesso à Justiça. Na mesma linha, Paulo Cezar Pinheiro Carneiro[24] indica os princípios da utilidade e da acessibilidade como dois dos princípios que informam o acesso à Justiça. Faz-se menção a esses dois princípios, uma vez que a informatização do processo vai gerar impacto sobre eles, repercutindo efeitos diretos sobre o princípio do acesso à Justiça.

O princípio da utilidade exprime que todo processo deve dar a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter. Essa idéia era defendida por Giuseppe Chiovenda, para quem “Il processo deve dar per quanto è possible praticamente a chi ha um diritto tutto quello e proprio quello ch’egli há diritto di conseguire”[25]. Paulo Cezar Pinheiro Carneiro[26] complementa esse conceito, afirmando que a entrega desse direito deve se dar da forma mais rápida e proveitosa possível.

No contexto do princípio da utilidade, a informatização do processo judicial poderá ter efeitos muito benéficos, em razão de algumas experiências prévias, como, por exemplo, a penhora online de numerário em contas bancárias. Desde 2002, os tribunais vêm atuando em conjunto com o Banco Central, através do Sistema Bacen-Jud, para bloquear dinheiro nas contas dos devedores. Esse procedimento, que antes dependia de um ofício escrito e de semanas ou até meses para se ter uma resposta sobre o sucesso da tentativa, agora, não dura mais do que 24 horas.

O juiz da causa, do seu próprio gabinete, envia uma mensagem eletrônica ao Banco Central, pelo aludido programa, determinando a penhora de um determinado valor, nas contas bancárias de um determinado devedor. Imediatamente, o Banco Central repassa a ordem a todas as instituições financeiras, que cumprem a determinação incontinênti. Essa experiência foi muito proveitosa, tendo em vista que muitas dívidas foram rapidamente satisfeitas pela penhora online.

A Lei 11.382/06, que regulamenta a nova execução de título extrajudicial, incluiu no Código de Processo Civil três dispositivos diretamente ligados à relação entre o uso do meio eletrônico no processo e o princípio da utilidade. O artigo 655-A introduz no corpo do código a penhora online de dinheiro em depósitos ou aplicações financeiras, tal como já ocorria com o sistema Bacen-Jud, e o parágrafo 6º do artigo 659 permite a penhora online de qualquer bem móvel ou imóvel.

Evidentemente, a constrição de um veículo dependerá da interligação entre os sistemas do tribunal e do Detran do estado em que se encontra o veículo. O mesmo pode ser dito com relação à constrição de imóveis, que dependerá de interligação com o sistema dos cartórios de registro de imóveis.

Por fim, impende comentar que o artigo 689-A prevê a realização de leilão eletrônico, que é feito pela internet e aumenta as chances de arrematação, em virtude da possibilidade de se ter um significativo número de licitantes, os quais poderão realizar seus lances de qualquer lugar do planeta.

Esses novos procedimentos eletrônicos da execução de título executivo extrajudicial estão em total consonância com os ditames da Lei 11.419/06, uma vez que seus atos são praticados pela forma eletrônica, com certificação digital. Talvez num futuro próximo, os bens dos devedores serão rapidamente encontrados e bloqueados para a satisfação das dívidas, graças a esses mecanismos eletrônicos eficientes.

Afinal, a constrição e a expropriação pela forma eletrônica são muito mais ágeis, de modo que conferem maior efetividade ao processo, em respeito ao princípio da utilidade. Nesse sentido, os tribunais devem celebrar acordos com os órgãos da administração pública (Ex: Ministério da Fazenda, Juntas Comerciais, Cartórios, etc.) para a criação de sistemas de informática que acelerem a comunicação entre os mesmos, de modo a permitir o alcance rápido, seguro e proveitoso de informações úteis ao descobrimento da verdade, bem como para facilitar averbações, registros, alterações em cadastros, etc[27]..

Como visto, a informatização renderá bons resultados no que diz respeito ao princípio da utilidade. Por outro lado, o princípio da acessibilidade tem pontos críticos que devem ser observados, para evitar a sua violação. Paulo Cezar Pinheiro Carneiro[28] assenta que a acessibilidade pressupõe a existência de pessoas capazes de estar em juízo, sem óbice de natureza financeira, manejando adequadamente os instrumentos legais judiciais e extrajudiciais existentes, de sorte a possibilitar a efetivação dos seus direitos. Assim, é primordial que sejam eliminadas as dificuldades econômicas que impeçam ou dificultem o cidadão de litigar.

Um dos mecanismos adotados no Brasil foi a previsão constitucional de assistência jurídica integral e gratuita (art. 5º, LXXIV), assim como a possibilidade de concessão do benefício da gratuidade de Justiça (Lei 1.060/50). A Defensoria Pública tem papel de destaque nesse campo e vem desempenhando suas funções de modo profícuo, apesar dos inúmeros obstáculos que tal classe enfrenta no dia-a-dia forense.

No entanto, com o advento da Lei 11.419/06, o custo do processo pode ser elevado de uma forma nova e diferente, a despeito da existência da Defensoria Pública e da possibilidade de se litigar com o benefício da gratuidade de Justiça. Isso porque o processo eletrônico depende do acesso à internet, através de banda larga; do uso de computador; de impressora e de scanner, entre outros equipamentos custosos. Ora, se os litigantes dependerão de advogados que tenham tais aparelhos e se é notório que grande parte dos advogados brasileiros vem passando por dificuldades financeiras, pode-se prever, nesse diapasão, uma barreira ao princípio da acessibilidade.

Outrossim, a parte que quiser litigar sem advogado, nas hipóteses permitidas em lei, também poderá ser prejudicada por essa barreira, uma vez que, segundo recente pesquisa do IBGE, apenas 21% da população brasileira têm acesso à rede mundial de computadores. O Brasil ocupa o 62º lugar no ranking de nível de acesso no mundo, e o quarto lugar, na América Latina[29].

Deste modo, a Lei 11.419/06 poderá impor um novo obstáculo financeiro aos advogados e aos litigantes, prejudicando sobremaneira o princípio do acesso à Justiça. Sendo assim, para evitar esse problema, cabe à administração pública adotar projetos sérios de inclusão digital, bem como ao Poder Judiciário disponibilizar infra-estrutura de informática ampla, acessível e de qualidade aos advogados e à população em geral[30].

Portanto, o impacto da informatização judicial sobre o princípio do acesso à Justiça apresenta duas facetas diferentes. Àqueles que não sofrem com o problema da exclusão digital, o uso do meio eletrônico proporcionará uma considerável eficiência na obtenção e no registro de informações em cadastros públicos, assim como na constrição e na expropriação de bens móveis e imóveis. Entretanto, aos que estão excluídos dos meios eletrônicos e digitais, a informatização poderá representar uma nova barreira ao acesso à Justiça, caso não seja implantada de forma prudente[31].

O impacto da informatização judicial sobre o princípio da celeridade

Ninguém pode negar que o desenvolvimento tecnológico vem acarretando, na maioria das áreas, a redução dos custos e um assustador aumento da velocidade na utilização dos serviços, em virtude da maior capacidade de armazenamento de informações, dados, itens, acessórios, etc., em menor espaço e com menos tempo. Na música, podemos citar os CDs, que substituíram os LPs e agora estão sendo engolidos pelos reprodutores de MP3.

No ramo do vídeo, as fitas VHS foram rapidamente trocadas pelos DVDs. As cartas, pelos e-mails. Os telefones fixos, pelos celulares ou até mesmo por chats na internet. Enfim, podemos destacar aqui inúmeros exemplos de como a tecnologia transformou e empreendeu uma melhora nos serviços, sem precisar aumentar os custos. Por que, então, o Poder Judiciário não pode utilizar a tecnologia em seu favor?

Aliás, é preciso atentar para o fato de que esse quadro social tecnológico em que vivemos também acarretou o aumento exponencial de contatos, de relações comerciais e, conseqüentemente, de conflitos. Assim, o número de processos no Poder Judiciário vem aumentando exponencialmente, mercê, em grande parte, dos serviços prestados com o uso da tecnologia. Os dados do Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro[32] revelam que as empresas mais acionadas nos Juizados Especiais são justamente aquelas ligadas ao setor de telefonia fixa e celular, além dos bancos[33] e provedores de acesso à internet.

Ora, se a tecnologia está propiciando o aumento do número de demandas, atravancando ainda mais o julgamento dos processos em tempo razoável, então é utilizando a tecnologia que o Poder Judiciário poderá acelerar a tramitação das causas[34]. A otimização da marcha processual não decorrerá somente do envio de petições pelo meio eletrônico.

A tramitação, em geral, será informatizada, até porque a própria Lei 11.419/06 infunde isso. Um bom exemplo é a carta precatória, que costuma durar alguns meses para ser cumprida e devolvida ao juízo deprecante, com a informatização, será muito mais produtiva, eis que chegará ao juízo deprecado na mesma velocidade em que um e-mail atinge o seu destinatário. Do mesmo modo, a intimação para os advogados, sendo feita pelo meio eletrônico, promoverá maior agilidade no cumprimento do prazo e, logo em seguida, na remessa da respectiva manifestação à conclusão.

Há um outro interessante exemplo do que poderá ocorrer. Conforme comentado acima, se os órgãos da administração pública se interligarem com os sistemas de informática do Poder Judiciário, é possível antever que a instrução processual terá na cibernética um grande aliado. Afinal, o juiz poderá requisitar informações e recebê-las ligeiramente, sem precisar passar pela tormentosa e morosa remessa de ofício de papel.

Destarte, a tramitação do processo pelo meio eletrônico será mais célere e mais prática[35], operando reflexos positivos sobre o princípio da celeridade, que está previsto especialmente no teor do artigo 5º, LXXVIII, da Constituição, segundo o qual os processos devem ter um tempo razoável de duração, com meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

O impacto da informatização judicial sobre o princípio da igualdade

O princípio da igualdade está previsto no caput do artigo 5º da Constituição e é um corolário do princípio do devido processo legal[36]. A previsão legislativa no campo processual se encontra especificamente no artigo 125, I, do Código de Processo Civil, que expressa que o juiz, ao dirigir o processo, deve assegurar às partes igualdade de tratamento. Esta, por sua vez, não pressupõe um tratamento isonômico formal, segundo o qual a lei não deve estabelecer diferença entre os indivíduos. Esse conceito já foi desenvolvido e deu lugar à igualdade substancial[37], que pugna pela igualdade material. Assim, a meta preconizada por esse princípio é a aplicação e a preservação da igualdade material, através de tratamento igual aos iguais e desigual, aos desiguais, na medida de suas diferenças.

No plano processual, a igualdade material está fundada no equilíbrio das armas e consiste em uma garantia estrutural do processo justo, que é assim apresentada por Leonardo Greco:

As partes devem ser tratadas com igualdade, de tal modo que desfrutem concretamente das mesmas oportunidades de sucesso final, em face das circunstâncias da causa. Para assegurar a efetiva paridade de armas o juiz deve suprir, em caráter assistencial, as deficiências defensivas de uma parte que a coloquem em posição de inferioridade em relação à outra, para que ambas concretamente se apresentem nas mesmas condições de acesso à tutela jurisdicional dos seus interesses[38].

Um fator que habitualmente afeta a paridade de armas é a capacidade econômica das partes. Quando uma delas possui mais recursos que a outra, a diferença financeira, em geral, reflete na qualidade do advogado, na capacidade de produção da prova, enfim, reflete justamente na oportunidade de sucesso final[39]. O ordenamento jurídico dispõe de alguns mecanismos para equilibrar a relação processual, como, por exemplo, a inversão do ônus da prova (artigo 6º, inciso VIII) no Código de Defesa do Consumidor, com o fito de ajudar a parte hipossuficiente.

Impende ressaltar que a Lei 11.419/06 também busca evitar o desequilíbrio de armas entre os litigantes do processo informatizado. De acordo com o artigo 10, parágrafo 3º, os órgãos do Poder Judiciário deverão manter equipamentos de digitalização e de acesso à rede mundial de computadores à disposição dos interessados para distribuição de peças processuais[40]. O objetivo desse dispositivo é o de evitar que a parte que tenha amplo acesso à informática predomine sobre o excluído digital, por conta dessa diferença. Afinal, como dito acima, elas devem ter as mesmas oportunidades.

No entanto, ainda que, nos tribunais, tais equipamentos sejam disponibilizados àqueles que não têm acesso à internet e ao computador, já se pode antever a seguinte disparidade de armas. Pelo artigo 10, parágrafo 1º, a petição eletrônica poderá ser protocolizada até a meia-noite do dia do prazo. Ora, os tribunais não ficam abertos até a meia-noite, e decerto não ficarão as salas dos tribunais que disponibilizam esses equipamentos. Dessa maneira, aquele que tem amplo acesso à informática em casa ou no escritório desfrutará de um prazo maior para protocolizar suas petições, o que demonstra a violação ao princípio da igualdade.

Demais disso, conforme comentado acima, o sucesso da informatização judicial depende da adoção de políticas públicas de inclusão digital, sob risco de o processo virtual se tornar, como afirma Edilberto Clementino Barbosa[41], “uma via de uso exclusivo das classes economicamente mais favorecidas da população”, criando-se duas Justiças distintas — “a dos ricos (informatizada e, conseqüentemente, mais rápida) e a dos pobres (tradicionalmente mais lenta)” — e maculando o princípio da igualdade.

Há quem entenda, por outro lado, que a adoção do processo eletrônico pelas camadas mais abastadas reduzirá bastante a quantidade de processos de papel nas prateleiras dos cartórios. Por conseguinte, aqueles que litigam pela via tradicional seriam beneficiados com a redução dos processos de papel, o que enxugaria a máquina judiciária.

Bem, o que se pode concluir, desde já, com relação ao princípio da igualdade, é que o meio eletrônico não pode ser imposto aos jurisdicionados. Antes disso, é necessária uma fase de transição, que permita o uso do meio eletrônico para a prática dos atos processuais, mas que não obrigue o litigante a utilizá-lo, sob risco de transgredir o princípio da igualdade.

Essa conclusão se reforça pelo artigo 11, parágrafo 6º, da Lei 11.419/06, que estabelece que os autos do processo poderão ser parcialmente eletrônicos. Assim, serão totalmente eletrônicos, quando as partes assim preferirem. Todavia, a partir do momento em que uma das partes não possui condição de atuar adequadamente por esse meio, e caso a outra opte pela via informatizada, então o processo deve correr sob a forma de parcialmente eletrônico.

O impacto da informatização judicial sobre o princípio da publicidade

O princípio da publicidade se reveste de significativo interesse público no plano processual, uma vez que, a partir dele, são desenvolvidas as regras de controle da Justiça pela população[42]. No Brasil, a publicidade do processo está prevista na Constituição (artigos 5º, inciso LX, e 83, inciso IX) e só pode ser restrita nos casos em que a intimidade ou o interesse social o exigirem[43]. O artigo 155 do Código de Processo Civil espelha essa regra geral da publicidade e regulamenta as situações em que deverá haver segredo de justiça[44].

Com efeito, o espírito democrático que envolve o ordenamento jurídico pátrio não combina com o que é secreto. Na visão de Rui Portanova[45], “à vista dos amplos poderes que detém o juiz, a publicidade é uma contrapartida, que dá segurança e garantia contra a falibilidade humana e as arbitrariedades dos julgadores”. Importa destacar que a publicidade do processo enseja não somente a análise dos autos pelo público, como também o acesso aos julgamentos e audiências[46].

A regra da publicidade do processo está bem clara no artigo 155 do Código de Processo Civil, de maneira que dispensava a sua regulamentação no processo eletrônico. A despeito disso, a Lei 11.419/06 assim tratou do tema, in verbis:

“Artigo 11. (...)

Parágrafo 6º — Os documentos digitalizados juntados em processo eletrônico somente estarão disponíveis para acesso por meio de rede externa para suas respectivas partes processuais e para o Ministério Público, respeitado o disposto em lei para as situações de sigilo e de segredo de Justiça”.

Bem, se a Lei 11.419/06 regulamentou algo que já estava claro, então significa que o processo eletrônico abordará a publicidade com alguma peculiaridade. Pelo menos, tal premissa é a mais lógica, uma vez que, do contrário, bastaria a norma silenciar sobre o assunto.

De acordo com o citado dispositivo, no processo eletrônico, os documentos digitalizados somente estarão disponíveis, pela internet, às partes, seus procuradores e ao Ministério Público. O legislador foi infeliz ao adotar o termo “documentos”. Afinal, de quais documentos a lei está tratando? São todos os documentos do processo? São os documentos adunados às petições? São apenas os documentos que exigem sigilo por sua própria natureza (extratos de contas bancárias, declaração de imposto de renda, etc.)? Impende, por conseguinte, confrontar esse dispositivo com o artigo 155 do Código de Processo Civil, para compreender a intenção da Lei 11.419/06.

Ao adotar a expressão “documentos digitalizados juntados em processo eletrônico”, a Lei 11.419/06 não se referiu à íntegra dos autos virtuais. Afinal, se esse fosse o seu objetivo, seria suficiente dizer que o processo eletrônico correrá em segredo de Justiça. Esse entendimento se reforça pela parte final desse parágrafo 6º, o qual faz a seguinte ressalva: “respeitado o disposto em lei para as situações de sigilo e de segredo de justiça”.

Logo, o que se extrai é que, nas circunstâncias do artigo 155, incisos I e II, do Código de Processo Civil, o processo eletrônico correrá em segredo de Justiça. Nas demais hipóteses, será público e apenas os documentos que ordinariamente devem ser acautelados ficarão restritos ao acesso das partes, dos seus procuradores e do parquet. Se essa interpretação prevalecer, pode-se afirmar que a informatização não produzirá nenhum impacto negativo sobre o princípio da publicidade. Aliás, o que se pode esperar é que, respeitadas as regras do segredo de Justiça, o processo eletrônico será mais acessível à população[47], em prol do princípio da publicidade, que preconiza o controle da atividade judiciária pela sociedade.

Já Petrônio Calmon tem um entendimento um pouco diferente. Para ele, “o parágrafo 6º do artigo 11 refere-se apenas à prova documental acostada aos autos”[48]. Isto, porque a lei, ao falar em documentos, não está tratando de petições nem dos atos do juiz ou do escrivão nem de qualquer outro. Assim, a posição do citado autor é a de que a Lei 11.419/06 proíbe a publicidade das provas documentais, seja nos casos de segredo de Justiça ou não. Em que pese a posição desse notável processualista, a intenção do legislador não parece ter sido a de restringir o acesso a todas as provas documentais, até porque essa interpretação transforma tal parágrafo em norma inconstitucional, uma vez que, ao restringir o acesso a qualquer documento, viola o princípio da publicidade.

A despeito das dúvidas ainda existentes sobre o mencionado parágrafo 6º, já se pode prever um impacto positivo da informatização do processo sobre o princípio da publicidade, na linha do entendimento de Edilberto Barbosa Clementino, segundo o qual o processo judicial eletrônico respeita o princípio da publicidade, na medida em que atende aos seguintes critérios:

a. Assegura e amplia o conhecimento pelas partes de todas as suas etapas, propiciando-lhes manifestação oportuna;

b. Enseja e amplia o conhecimento público do Processo Judicial, bem como do conteúdo das decisões ali proferidas, para plena fiscalização da sua adequação pelas partes e pela coletividade[49].

 

Conclusão

 

A onda tecnológica abraçou o planeta e fincou suas garras sobre todos os ramos de atuação da humanidade. A jurisdição, obviamente, não ficou de fora do impacto cibernético. Mas, conforme comentado acima, ainda que a informatização do processo judicial seja um caminho sem volta, não se pode olvidar que os princípios processuais devem ser respeitados, sob risco de um grave retrocesso na constante busca pelo processo justo.

É importante frisar que, se a informatização do processo judicial vem para ajudar, ela não pode atrapalhar[50]. Por mais redundante que seja essa preocupação, ela é necessária. José Carlos Barbosa Moreira já faz, há um bom tempo, o alerta para se ter cautela com esse açodamento legislativo nas reformas processuais.

O cuidado na implantação do sistema da Lei 11.419/06 deve ser redobrado, especialmente com relação aos princípios do acesso à Justiça e da igualdade. Como muito bem advertiu Edilberto Barbosa Clementino, a informatização do processo judicial não pode dividir a Justiça entre aquela dos ricos (informatizada e veloz) e aquela dos pobres (lenta e ineficiente). Diante da exclusão digital que assola o Brasil, será necessária uma vasta política de integração populacional aos meios cibernéticos, tal como ocorreu com a telefonia, em decorrência do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), instituído pela Lei 9.998, de 17 de agosto de 2000.

Se essas circunstâncias forem levadas em consideração, com a adoção dos devidos métodos preventivos, poderemos esperar um impacto positivo da informatização judicial sobre todos os princípios processuais.

Bibliografia

— ALMEIDA FILHO, José Carlos de Araújo. Processo Eletrônico e Teoria Geral do Processo Eletrônico. A Informatização Judicial no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007.

— CALMON, Petrônio. Comentários à Lei de Informatização do Processo Judicial. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007.

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Bruno Aronne / Revista Consultor Jurídico / http://conjur.estadao.com.br/static/text/65929,1
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