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esta coluna semanal (como se diria em linguagem jornalística,
“hebdomadária”) falando de um assunto que está na pauta cotidiana da
doutrina e da jurisprudência. Com efeito, venho denunciando de há muito
um fenômeno que tomou conta da operacionalidade do direito. Trata-se do
pan-principiologismo, verdadeira usina de produção de princípios
despidos de normatividade. Há milhares de dissertações de mestrado e
teses de doutorado sustentando que “princípios são normas”. Pois bem. Se
isso é verdadeiro – e, especialmente a partir de Habermas e Dworkin,
pode-se dizer que sim, isso é correto – qual é o sentido normativo, por
exemplo, do “princípio” (sic) da confiança no juiz da causa? Ou do
princípio “da cooperação processual”? Ou “da afetividade”? E o que dizer
dos “princípios” da “proibição do atalhamento constitucional”, da
“pacificação e reconciliação nacional”, da “rotatividade”, do “deduzido e
do dedutível”, da “proibição do desvio de poder constituinte”, da
“parcelaridade”, da “verticalização das coligações partidárias”, da
“possibilidade de anulamento” e o “subprincípio da promoção pessoal”? Já
não basta a bolha especulativa dos princípios, espécie de subprime
do direito, agora começa a fábrica de derivados e derivativos. Tem
também o famoso “princípio da felicidade” (desse falarei mais adiante!).
No livro Verdade e Consenso (Saraiva, 2011), faço uma listagem de mais de quarenta desses standarts
jurídicos, construídos de forma voluntarista por juristas
descomprometidos, em sua maioria, com a deontologia do direito
(lembremos: princípios são deontológicos e não teleológicos!).
Outro
fator que colabora para o desenvolvimento desse tipo de fragilização do
direito é o ensino jurídico, ainda dominado – ou fundamentalmente
tomado – por uma cultura estandardizada. Leituras superficiais, livros
que buscam simplificar questões absolutamente complexas. A pergunta que
faço é: alguém se operaria com um médico que escrevesse um livro chamado
“cirurgia cardíaca simplificada”? Ou o “ABC da operação de cérebro”? Se
a resposta for “não”, então (re)pergunto: então, por qual razão, no
campo jurídico, o uso desse tipo de material é cada vez mais recorrente?
Avancemos,
pois. Se o constitucionalismo contemporâneo – que chega ao Brasil
apenas ao longo da década de 90 do século XX – estabelece um novo
paradigma, ou proporciona as bases para a introdução de um novo –, o que
impressiona, fundamentalmente, é a permanência das velhas formas de
interpretar e aplicar o direito, o que pode ser facilmente percebido
pelos Códigos ainda vigentes (embora de validade constitucional duvidosa
em grande parte). Em tempos de intersubjetividade (refiro-me à
transição da prevalência do esquema sujeito-objeto para a relação
sujeito-sujeito), parcela considerável de juristas ainda trabalha com os
modelos (liberais-individualistas) “Caio”, “Tício” e “Mévio”...!
Os manuais – entendidos aqui, deixo claro, como “modelos prêt-à-porters”
de disseminação da dogmática jurídica de baixa densidade científica –
mudaram muito pouco nos últimos anos. Portanto, falo de uma certa
“cultura manualesca”. Sem generalizar, evidentemente, até porque existem
bons manuais. Pois bem. Mergulhados nesse magma de significações (aqui
homenageio Cornelius Castoriadis) forjado pelo sentido comum teórico,
boa parte dos juristas reproduz sentidos. É a estandartização que,
paradoxalmente, cresce dia a dia, em plena era da informatização. Daí
ser possível afirmar que parte do material utilizado nas salas de aula
das Faculdades de Direito deveria trazer uma tarja com a advertência
similar às carteiras de cigarro: “o uso constante desse material pode
fazer mal à sua saúde mental”. Além de uma fotografia de um bacharel,
com uma expressão bizarra, com o subtítulo: “Usei durante cinco anos e
fiquei assim...”.
No âmbito do sentido comum teórico (dogmática
jurídica de baixa intensidade teorética), ocorre a ficcionalização do
mundo jurídico-social. Confunde-se a ficção da realidade com “a
realidade das ficções”... Parcela do que consta nos manuais e compêndios
é reproduzida nos concursos públicos.
Não faz muito tempo, em um
importante concurso público, foi colocada a seguinte questão: Caio quer
matar Tício (sempre eles), com veneno; ao mesmo tempo, Mévio também
deseja matar Tício (igualmente com veneno, é claro!). Um não sabe da
intenção assassina do outro. Ambos ministram apenas a metade da dose
letal (na pergunta não há qualquer esclarecimento acerca de como o
idiota do Tício bebe as duas meias porções de veneno). Em conseqüência
da ingestão das meias doses, Tício vem a perecer... Daí a relevantíssima
indagação da questão do concurso: Qual o crime de Caio e Mévio? Muito
relevante; deveras importante...! Qual seria a resposta? Por certo, os
nossos tribunais estão repletos de casos como este... Casos como este
devem ser corriqueiros!
Outro exemplo que há tempos venho
denunciando é o de uma pergunta feita em concurso público de âmbito
nacional, pela qual o examinador queria saber a solução a ser dada no
caso de um gêmeo xifópago ferir o outro! Com certeza, gêmeos xifópagos -
encontráveis em qualquer esquina - andam armados e são perigosos...
Pois não é que a pergunta voltou a ser feita, desta vez em concurso
público de importante carreira no Estado do Rio Grande do Sul? A questão
de direito penal que levou o número 46 dizia:
“André e Carlos,
gêmeos xipófagos [sic – o original da pergunta constou assim], nasceram
em 20 de janeiro de 1979. Amadeu é inimigo capital de André. Pretendendo
por(sic) fim a vida de André, desfere-lhe um tiro mortal, que também
acerta Carlos, que graças a uma intervenção cirúrgica eficaz,
sobrevive”.
E seguem-se várias alternativas.
Sem entrar no mérito da questão — e até para não parecer politicamente incorreto e não ser processado pelo gêmeo xifópago que, milagrosamente, sobreviveu —,
impõem-se, no mínimo, duas observações: primeira, é importante saber
que os gêmeos xifópagos (e não xipófagos, como constou da pergunta)
nasceram no mesmo dia (tal esclarecimento era de vital importância!); e,
segunda, não está esclarecido o porquê de Amadeu odiar apenas a André, e
não a Carlos (afinal, tudo está a indicar que eles sempre andavam
juntos – a ironia, aqui, é irresistível).
Agora, falando sério:
diariamente temos lutado para superar a crise do ensino jurídico e da
operacionalidade do direito. Não está nada fácil. Basta um olhar
perfunctório para verificar o estado da arte da crise. Para se ter uma
idéia da dimensão do problema, há um importante manual de direito penal –
dos mais vendidos - que ensina o conceito de erro de tipo do seguinte
modo: um artista se fantasia de cervo e vai para o meio do mato; um
caçador, vendo apenas a galhada, atira e acerta o “disfarçado em cervo”.
Fantástico. Quem não sabia o que era erro de tipo agora sabe...(ou
não!). Só uma coisa me deixou intrigado: por que razão alguém se
fantasiaria de cervo (veado) e iria para o meio do mato? Trata-se de um
mistério.
O mesmo livro explica o significado de nexo causal, a
partir do seguinte exemplo sobre causas preexistentes: “o genro atira em
sua sogra, mas ela não morre em conseqüência dos tiros, e sim de um
envenenamento anterior provocado pela nora, por ocasião do café
matinal”. Que coisa, não? Entretanto, a tragédia familiar não termina
aí. O que seria causa “superveniente” no direito penal? O manual dá a
solução, com o seguinte exemplo: “após o genro ter envenenado sua sogra,
antes de o veneno produzir efeitos, um maníaco invade a casa e mata a
indesejável (sic) senhora a facadas”. Significa dizer que o genro foi
salvo pelo maníaco (seria o maníaco do parque, que teria escapado da
prisão?) Outro mistério para a ciência jurídica resolver...
E o
que seria erro de pessoa no direito penal? Resposta “perfeita”: é quando
o agente deseja matar o pequenino filho de sua amante, para poder desfrutá-la (sic) com exclusividade (sic).
No dia dos fatos, à saída da escolinha, do alto de um edifício,
operverso autor efetua um disparo certeiro na cabeça da vítima, supondo
tê-la matado. Noentanto, ao aproximar-se do local, constata que, na
verdade, assassinou um anãozinho que trabalhava no estabelecimento como
bedel, confundindo-o, portanto, com a criança quedesejava eliminar.
Permitamo-nos imaginar a cena: alguém quer matar o filho da amante para
“desfrutar” da mãe do infante! Ele queria exclusividade! Que sujeito
tarado e perverso, não?
Ah, se o direito penal fosse tão
fantasioso, engraçado ou simples assim. O problema é que sempre sobra
(uma porção enorme de) realidade. E como sobra! Com efeito, enquanto
setores importantes da dogmática jurídica tradicional se ocupam com
exemplos fantasiosos e idealistas/idealizados, a vida continua. Mais ou
menos como em uma sala de aula de uma faculdade de direito no Rio de
Janeiro, em que o professor explicava os crimes de dano, rixa e
estampilha falsa e, lá de fora, ouviram-se tiros, muitos tiros. Na
verdade, enquanto o professor explicava os conceitos desses relevantes
crimes, várias pessoas foram mortas, em um conflito entre traficantes.
Mas o professor não se abalou: abriu seu Código e passou a explicar o
conceito de atentado ao pudor mediante fraude!
Faltam-nos, pois,
elaborar grandes narrativas no direito. A literatura deveria nos
auxiliar, para, a partir disso, abrir frestas no direito para o ingresso
da sangria do cotidiano. Uma pitada de Os Miseráveis, de
Victor Hugo – que, publicado em 1862, vendeu sete mil exemplares em
vinte e quatro horas - poderia ser útil. Quantos Jean Valjeans,
personagem que é encarcerado e depois perseguido por ter furtado um pão,
existem espalhados no “sistema” carcerário ou no “sistema judiciário”,
respondendo processos? A cada dia, deparamo-nos com novos Jean
Valjeans... Como disse o camponês salvadorenho – a frase é creditada a
um conto de José Jesus de La Torre Rangel – “la ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos”!
Mas
prossigo: pesquisando um pouco mais, descobri em outro manual que o
indivíduo que escreve a carta não pode ser agente ativo do crime de
violação de correspondência; também constatei que, para configurar o
crime de rixa, é necessário o animus rixandi (sic), e ainda verifiquei que agressão atual é a que está acontecendo, e que agressão iminente é a que está por acontecer
(muito instigante, não?). E coisa alheia móvel, no crime de furto, é
algo “que não pertence à pessoa”...! Finamente, outro “mistério” foi
solucionado pelo manual. Com efeito, havia sérias “dúvidas” acerca do
que seria o “princípio da consunção”. Mas a resposta já está nas bancas,
nas melhores casas do ramo, através do seguinte exemplo: é quando “o
peixão (fato mais abrangente) engole os peixinhos (fatos que integram
aquele como sua parte)”. E, pronto. Fiat Lux.
Mas tem mais. Talvez o Top Five
da dogmática jurídica (entendida como sentido comum teórico) esteja no
seguinte exemplo, retirado do Concurso Público para Ingresso na Carreira
de Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro, do ano de 2010.
PROVA
ESCRITA DISCURSIVA DE CARÁTER GERAL DO XXIII CONCURSO PARA INGRESSO NA
CARREIRA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (7 linhas
para resposta)
12ª Questão: Um indivíduo hipossuficiente, interessado em participar da prática de modificação extrema do corpo (body modification extreme),
decidiu se submeter a cirurgias modificadoras, a fim de deixar seu
rosto com a aparência de um lagarto. Para tanto, pretende enxertar
pequenas e médias bolas de silicone acima das sobrancelhas e nas
bochechas, e, após essas operações, tatuar integralmente sua face de
forma a parecer a pele do anfíbio.
Frustrado, após passar por
alguns hospitais públicos, onde houve recusa na realização das
mencionadas operações, o indivíduo decidiu procurar a Defensoria Pública
para assisti-lo em sua pretensão.
Pergunta-se: você, como Defensor Público, entende ser viável a pretensão? Fundamente a resposta. (7,0 pontos)
Pois
bem. Ao que consta, recebeu nota máxima quem respondeu que o defensor
público deveria ajuizar a ação, porque o hipossuficiente tem o direito à
felicidade (princípio da felicidade). Ponto para o
pan-principiologismo...! Estamos, pois, diante de uma excelente amostra
do patamar que atingiu o pan-principiologismo e o estado de natureza
hermenêutico em terrae brasilis, que sustentam ativismos e
decisionismos. Por certo, deve haver uma espécie de “direito fundamental
a alguém se parecer com um lagarto” ou algo do gênero. Como se o
direito estivesse à disposição para qualquer coisa. Não parece ser um
bom modo de exercitar a cidadania o incentivo – por intermédio de
pergunta feita em concurso público - a que advogados de
hipossuficientes, pagos pelo contribuinte, venham a se utilizar do Poder
Judiciário para fazer “laboratório” ou até mesmo estroinar com os
direitos fundamentais. Não faz muito, um aluno recebeu sentença
favorável de um juiz federal no RS, pela qual a Universidade deveria
elaborar curriculum especial para ele, porque, por “objeção de
consciência”, negava-se a manipular animais na disciplina de anatomia,
na Faculdade de Medicina. E o que dizer de uma petição feita por
defensor público requerendo o fornecimento, por parte do erário (a
viúva) de xampu para pessoa calva? Eis, aqui, pois, uma coletânea de
elementos que apontam, em pleno Estado Democrático de Direito,
paradoxalmente para o recrudecimento do conhecimento jurídico.
Essa crise de paradigma(s) – que denomino de “crise paradigmática de dupla face (conforme delineio em Hermenêutica Juridica em Crise,
Livraria do Advogado, 10ª. Ed, 2010) -, à evidência, atinge o conjunto
das Instituições encarregadas de administrar a justiça. Com efeito,
estas Instituições, reproduzidas a partir de um ensino estandartizado
(e, aqui, devemos chamar à balia as Faculdades de Direito e a reprodução
do sentido comum teórico por elas proporcionado), sustentam esse gap
existente entre, de um lado, a teoria do direito e a dogmática jurídica
tradicional, e, de outro, entre a Constituição, os textos
infraconstitucionais e as demandas sociais. Assim, se a Constituição da
República possui os indicadores formais para uma ruptura paradigmática
, estes mais de vinte anos deveriam testemunhar uma ampla adaptação do
direito aos ditames da Lei Maior. Mas não parece que isso esteja
acontecendo.
Enquanto isso, no mundo das ficções, ficamos
discutindo Caios, Tícios e o direito fundamental a alguém se parecer com
um lagarto... O que mais falta acontecer? Na próxima semana falarei de
outra praga contemporânea, típica de terrae brasilis: os embargos declaratórios...!
Numa palavra final: mais instigante certamente seria não estarmos discutindo as hilariantes questões de concursos públicos de terrae brasilis, mas, sim, um romance como O Sorriso do Lagarto,
de João Ubaldo Ribeiro... Naquela Ilha, o Dr. Lúcio Nemesio fazia
experiências, buscando criar um ser híbrido, desprovido de algumas
qualidades humanas. No livro, o louco médico tem êxito. Na minissérie
que a Globo produziu, a cena final é maravilhosa, quando se vê a câmara
focalizando um híbrido de um lagarto e humano escondido na igreja,
enquanto um coral entoa um cântico! Pronto. Bem melhor que o direito! Ou
seja, como explica o próprio João Ubaldo, o cerne da questão de O Sorriso do Lagarto é a crítica ao tempo que perdemos com as coisas no nosso cotidiano... Tem toda a razão!