Na
Europa, a tributação indireta se dá por meio de um único tributo, o
Imposto sobre Valor Agregado (IVA), cuja cobrança é promovida pelo
governo central de cada um dos Estados Membros. No Brasil, o cenário é
bem diferente: a competência para a tributação indireta é dividida entre
as três esferas de governo. Paralelamente à incidência das
contribuições sociais, outorga-se à União competência para tributar a
cadeia industrial (com o IPI), aos estados, a circulação de mercadorias
(com o ICMS), e aos municípios, o setor de serviços (com o ISS).
Não
obstante essa divisão de competências, há atividades que, objetivamente
consideradas, apresentam características próprias tanto de
industrialização como de prestação de serviços, o que lhes deixa
vulneráveis à incidência de mais de um tributo (apesar da ocorrência de
um só fato gerador). É o caso, por exemplo, das atividades de
recondicionamento, acondicionamento, montagem e beneficiamento,
exercidas em bens de terceiros (“industrialização por encomenda”), que,
por má técnica legislativa, estão previstas tanto como hipótese de
incidência tanto do ISS quanto do IPI, nas respectivas legislações de
regência.
Mas, como definir o divisor de águas em situações como essa?
De
acordo com as regras constitucionais aplicáveis, a lei complementar é o
instrumento apto a dirimir eventuais conflitos de competência que
decorram da cobrança de tributos sobre o mesmo fato gerador (artigo
146). Busca-se, assim, evitar que determinado ente tributante invada a
competência de outro.
Nos termos em que definida, a competência da
União para a cobrança do IPI está, em regra, circunscrita ao conjunto
de etapas que compõem o ciclo de industrialização do produto. Esse
conjunto de etapas se dá, obviamente, na fase anterior à aquisição do
produto para consumo final. A partir dessa aquisição, as atividades que
tenham aqueles bens por objeto passam a ter a natureza de serviço,
sujeitando-se, consequentemente, ao ISS (desde que constem da lista dos
serviços tributáveis pelo imposto municipal). Portanto, a aquisição do
bem pelo consumidor final é o marco definidor da incidência de um
tributo ou outro.
Sob essa lógica, o Decreto Lei 406/1968, ao
listar, com força de lei complementar, as atividades de beneficiamento,
montagem, acondicionamento/reacondicionamento e
renovação/recondicionamento, como sujeitas à incidência do ISS, fez
expressa referência ao fato de que ele não incidiria nas hipóteses em
que os bens objeto das referidas prestações fossem destinados a industrialização ou comercialização.
Havia,
assim, em consonância com o estabelecido no texto constitucional,
nítida distinção dos campos de incidência do IPI e do ISS no que
concerne a atividades relacionadas à "industrialização por encomenda".
Tratando-se de bens ainda inseridos no ciclo industrial do produto, o
imposto incidente seria o IPI; se tais atividades fossem exercidas fora
desse ciclo, o imposto incidente seria o ISS.
Ocorre que, no dia
31 de julho de 2003, esses dispositivos do DL 406/68 foram revogados
pela Lei Complementar 116/03, que passou a regular o ISS em âmbito
nacional. A referida Lei Complementar, ao definir os serviços passíveis
de serem alcançados pelo imposto municipal, listou, entre outras, as
seguintes atividades:
“14 - Serviços relativos a bens de terceiros
14.01
- Lubrificação, limpeza, lustração, revisão, carga e recarga, conserto,
restauração, blindagem, manutenção e conservação ele máquinas,
veículos, aparelhos, equipamentos, motores, elevadores ou ele qualquer
objeto (exceto peças e partes empregadas, que ficam sujeitas ao ICMS).
[...]
14.03 - Recondicionamento de motores (exceto peças e partes empregadas, que ficam sujeitas ao ICMS).
14.04 - Recauchutagem ou regeneração de pneus.
14.05 - Restauração, recondicionamento, acondicionamento, pintura,
beneficiamento, lavagem, secagem, fingimento, galvanoplastia,
anodização, corte, recorte, polimento, plastificação e congêneres, de
objetos quaisquer.
[...]
14.08 - Encadernação, gravação e douração de livros, revistas e congêneres.
[...]
14.11 - Tapeçaria e reforma de estofamentos em geral.
14.12 - Funilaria e lanternagem.” (grifo nosso)
A não referência
pela LC 116/03 ao fato de que o serviço deveria se destinar ao
consumidor final para que pudesse ser tributado pelo ISS (como havia
feito o DL 406/68) fez com que Municípios pretendessem a incidência do
imposto sobre a denominada industrialização por encomenda. Afinal,
diziam os municípios, tal industrialização se dá sobre bens de
terceiros. Logo, por expressa determinação literal dos dispositivos de
lei aplicáveis, ela deveria estar sujeita à incidência do imposto
municipal.
O Superior Tribunal de Justiça entendeu que essa linha
de argumentação é boa e manteve a cobrança do imposto municipal sob o
fundamento de que a “industrialização por encomenda” configura obrigação
de fazer e está listada como serviço tributável na LC 116/03. Com a
devida vênia, tal interpretação viola o princípio da competência
privativa que informa o sistema tributário nacional, pelo qual, como
visto acima, reserva-se à competência federal e estadual os impostos
sobre a produção e a circulação de mercadorias, respectivamente,
impossibilitando, assim, a incidência do ISS sobre atividades que tenham
aquela natureza.
A LC 116/03 deve, a nosso ver, ser interpretada
como se a ressalva que antes constava do DL 406/68 (de não incidência do
ISS quando o bem fosse destinado a industrialização ou comercialização)
esteja implícita no item 14 da lista anexa, de forma que esse imposto
só possa incidir sobre atividades/serviços realizados em bens que sejam
destinados ao consumo dos respectivos beneficiários. Do contrário, tendo
em vista ser essa claramente uma hipótese em que não se admite a
bitributação (por se tratar de competências privativas explicitamente
definidas na Constituição Federal), ter-se-ia que a Lei Complementar não
teria exercido uma de suas principais funções: dirimir, nessas
circunstâncias, o conflito de competência que existiria entre União
(IPI) e Municípios (ISS).
Essa conclusão levaria à consequente
impossibilidade de cobrança de tributos sobre tais operações, conforme
decidiu o Supremo Tribunal Federal, ao julgar inconstitucional a
cobrança do Adicional do Imposto sobre a Renda (Adir), por não haver lei
complementar que indicasse as regras que solucionariam eventuais
conflitos de competência decorrentes das leis estaduais que dispunham
sobre o assunto. Eis a ementa da decisão proferida na Ação Direta de
Inconstitucionalidade 28-SP, julgada pelo pleno do STF, que ilustra, com
exatidão, o entendimento desse tribunal sobre a matéria:
“Ação
Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 6.352, de 29 ele dezembro de
1988, do Estado de São Paulo. Tributário. Adicional de Imposto de Renda
(CF, art 155, II), arts. 146 e 24, § 3 da parte permanente da CF e art.
34, §§ 3% 4° e 5% do ADCT. O adicional do imposto de renda, de que trata
o inciso II do art. 155, não pode ser instituído pelos Estados e
Distrito Federal, sem que, antes, a lei complementar nacional, prevista
no capuz do art. 146, disponha sobre as matérias referidas em seus
incisos e alíneas, não estando sua edição dispensada pelo § 3° do art.
24 da parte permanente da Constituição Federal, nem pelos §§ 3% 4° e 5°
do art. 34 do ADCT. Ação julgada procedente, declarada a
inconstitucionalidade da Lei n. 6.352, de 29 de dezembro de 1988, do
Estado de São Paulo.” (Revisto Trimestral de Jurisprudência, v. 151, p.
657)
Resultado semelhante na hipótese em exame (“industrialização
por encomenda”) só será evitado caso a LC 116/03 seja interpretada no
sentido de que as atividades realizadas sobre bens de terceiros somente
são alcançadas pela incidência do ISS se forem realizadas fora do
respectivo ciclo de industrialização ou comercialização. Adotar-se-ia,
no caso, interpretação conforme a Constituição.
O Plenário do STF
parece ter seguido tal linha de entendimento quando analisou a Medida
Cautelar proposta na ADI 4.389-DF. Nesse julgamento, a Egrégia Corte
entendeu que não poderia haver incidência do ISS na impressão gráfica
realizada em embalagens, uma vez que elas seriam destinadas a
comercialização e, portanto, estariam no campo de incidência do ICMS (e
do IPI).
Fazemos especial referência ao voto da ministra Ellen
Gracie, que reforçou a tese já defendida com o argumento de que, caso
fosse permitida a incidência do ISS, estar-se-ia inserindo um tributo
cumulativo entre atividades realizadas no âmbito da produção ou
comercialização. Isso que acarretaria o estorno dos créditos
anteriormente apropriados e impediria o respectivo creditamento pelas
empresas adquirentes. Frustrando, assim, um dos principais objetivos do
sistema tributário constitucional brasileiro, que é justamente o de
evitar os malefícios econômicos causados pela cumulatividade de
incidências na cadeia produtiva.
Por mais esse fundamento,
verifica-se que, mesmo após a edição da LC 116/03, as operações de
industrialização por encomenda estão sujeitas exclusivamente às regras
de incidência do IPI.