Suicídio e embriaguez não geram exclusão automática do direito à cobertura do seguro
De um lado, o cidadão em busca de alguma
segurança financeira, em caso de acidente; de outro, a empresa
seguradora, que oferece essa possibilidade mediante o pagamento de
determinada quantia. No meio disso tudo, o Judiciário, tentando compor
conflitos, reprimir fraudes e dirimir controvérsias advindas dessa
relação. Entre as questões mais polêmicas já examinadas pelo Superior
Tribunal de Justiça (STJ) sobre o tema, está a discussão a respeito da
perda da cobertura securitária em casos de suicídio e embriaguez ao
volante.
A história sempre começa mais ou menos do mesmo jeito:
tudo vai indo bem, até que chega a hora de a seguradora cumprir o
combinado. Diante de certas circunstâncias que envolveram o sinistro, a
empresa se recusa a pagar, e então o beneficiário do seguro vai à
Justiça.
Num desses casos, um beneficiário de Minas Gerais
ajuizou ação ordinária de cobrança contra o Santander Brasil Seguros
S/A, pretendendo obter o pagamento de indenização no valor de R$ 200
mil, além de ressarcimento de despesas de assistência funerária de,
aproximadamente, R$ 3 mil. Os valores decorriam do seguro de vida
contratado em 12 de dezembro de 2005 por sua companheira, que cometeu
suicídio em maio de 2006.
Em primeira instância, a ação foi
julgada improcedente. Segundo o juiz da 25ª Vara Cível da comarca de
Belo Horizonte, como o seguro foi contratado em 2005, aplica-se o Código
Civil de 2002. “Nessa perspectiva, não vejo como acolher a pretensão
autoral, sendo certo que o suicídio ocorreu no interregno de dois anos
contados da assinatura do contrato, delineando-se hipótese legal de
exclusão da cobertura", considerou.
Houve apelação, mas o
Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) manteve a sentença. Ao negar
provimento, o tribunal mineiro entendeu que, antes da vigência do Código
Civil de 2002, cabia às seguradoras comprovar que o suicídio havia sido
premeditado, para que pudessem se eximir do pagamento de indenização
securitária decorrente desta espécie de morte.
“A partir da
vigência do novo Código Civil, essa controvérsia já não mais se
sustenta, haja vista a adoção de critério objetivo no próprio texto”,
afirmou o desembargador relator em seu voto. Segundo o artigo 798 do
CC/2002, o beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o
segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do
contrato, ou da sua recondução depois de suspenso.
No recurso
para o STJ (REsp 1.077.342), a defesa do beneficiário do seguro alegou
que é necessária a comprovação, por parte da seguradora, de que o
suicídio foi premeditado. Afirmou, também, que o acórdão recorrido era
contrário à jurisprudência da Corte.
Ônus da seguradora
O
recurso especial foi provido. “Inicialmente, cumpre observar que, na
vigência do Código Civil de 1916, somente mediante a comprovação da
premeditação do suicídio do segurado, ônus que cabia à seguradora, tinha
lugar a negativa de pagamento da indenização securitária”, explicou o
ministro Massami Uyeda, ao votar.
O relator observou que o
entendimento dado ao dispositivo legal pelo Supremo Tribunal Federal
está representado no enunciado da Súmula 105. “Salvo se tiver havido
premeditação, o suicídio do segurado no período contratual de carência
não exime o segurador do pagamento do seguro”, diz o texto. Ele lembrou
que o entendimento do STJ foi no mesmo sentido, ao editar a Súmula 61:
“O seguro de vida cobre o suicídio não premeditado.”
Segundo o
ministro, é possível a interpretação entre os enunciados das Súmulas 105
do STF e 61 do STJ na vigência do Código Civil de 2002. De acordo com a
redação do artigo 798 do CC/2002, o beneficiário não fará jus à
cobertura securitária se o suicídio for praticado pelo segurado nos
primeiros dois anos de vigência inicial do contrato.
“Todavia, a
interpretação literal do disposto no artigo 798 do Código Civil de 2002
representa exegese estanque, que não considera a realidade do caso com
os preceitos de ordem pública, estabelecidos pelo Código de Defesa do
Consumidor, aplicável obrigatoriamente aqui, em que se está diante de
uma relação de consumo”, ressaltou o relator.
Para ele, o
legislador procurou evitar fraudes contra as seguradoras na hipótese de
contratação de seguro de vida por pessoas que já tinham a ideia de
suicídio quando firmaram o instrumento contratual. Ele observou que uma
coisa é a contratação causada pela premeditação ao suicídio, que pode
excluir a indenização. Outra, diferente, é a premeditação do próprio ato
suicida.
“Ainda que a segurada tenha cometido o suicídio nos
primeiros dois anos após a contratação, não há falar em excludente de
cobertura, uma vez que não restou demonstrada a premeditação”,
acrescentou. A decisão condenou a seguradora ao pagamento da indenização
securitária, bem como ao auxílio funeral, com correção pelo IGP-M,
desde a data da apólice, e juros de 1% ao mês, contados da citação.
Critério objetivo
Em
outro caso (Ag 1.414.089), a mesma seguradora insistiu no argumento de
que o novo Código Civil estabeleceu um critério objetivo para a
indenização do suicídio, que só deve ser paga caso a morte ocorra após
dois anos do início da vigência do contrato, não mais se cogitando sobre
a premeditação. Ao negar provimento e manter a condenação, o ministro
Sidnei Beneti observou que o biênio previsto no artigo 798 do CC/02 tem
como objetivo evitar infindáveis discussões judiciais a respeito da
premeditação do suicídio do segurado, geralmente ocorrido anos após a
celebração do contrato de seguro.
“À luz desse novo dispositivo
legal, ultrapassado o prazo de dois anos, presumir-se-á que o suicídio
não foi premeditado, mas o contrário não ocorre: se o ato foi cometido
antes desse período, haverá a necessidade de prova, pela seguradora, da
premeditação”, considerou. Em sua obra “Instituições de Direito Civil”, o
jurista Caio Mário da Silva Pereira afirma que a prova da premeditação é
imprescindível, “sob pena de o segurador obter enriquecimento sem
causa, diante das pesquisas da ciência no campo da medicina envolvendo a
patologia da depressão”.
Na decisão, o ministro reconhece que a
intenção do dispositivo é evitar fraudes contra as seguradoras. “Porém,
isso não justifica a falta de pagamento se não comprovado que o
segurado agiu de má-fé, ou melhor, que não premeditou o ato extremo”,
afirmou.
Boa-fé e lealdade
No julgamento
do REsp 1.188.091, com o mesmo tema, a ministra Nancy Andrighi lembrou
que as regras relativas aos contratos de seguro devem ser interpretadas
sempre com base nos princípios da boa-fé e da lealdade contratual. “Essa
premissa é extremamente importante para a hipótese de indenização
securitária decorrente de suicídio, pois dela extrai-se que a presunção
de boa-fé deverá também prevalecer sobre a exegese literal do artigo 798
do CC/02”, declarou a relatora.
Segundo a ministra, não é
razoável admitir que, na edição do citado artigo, o legislador, em
detrimento do beneficiário de boa-fé, tenha deliberadamente suprimido o
critério subjetivo para aferição da premeditação do suicídio: “O período
de dois anos contido na norma não deve ser examinado isoladamente, mas
em conformidade com as demais circunstâncias que envolveram sua
elaboração, pois seu objetivo certamente não foi substituir a prova da
premeditação do suicídio pelo mero transcurso de um lapso temporal.”
Em
seu voto, a relatora faz distinção entre a premeditação que diz
respeito ao ato do suicídio daquela que se refere ao ato de contratar o
seguro com a finalidade única de favorecer o beneficiário que receberá o
capital segurado. “Somente a última hipótese permite a exclusão da
cobertura contratada, pois configura a má-fé contratual”, afirmou.
Para
o ministro Luis Felipe Salomão (Ag 1.244.022), se alguém contrata um
seguro de vida e depois comete suicídio, não se revela razoável, dentro
de uma interpretação lógico-sistemática do diploma civil, que a lei
estabeleça presunção absoluta para beneficiar as seguradoras.
“Entendo
que o dispositivo não teve o condão de revogar a jurisprudência
tranquila da Corte, cristalizada na Súmula 61. Deve-se buscar, na
realidade, interpretar a norma de forma extensiva, tomando-se como base
os princípios que nortearam a redação do novo código, entre os quais os
princípios da boa-fé e da função social do contrato”, acrescentou.
Em
outro caso (REsp 164.254), que discutia indenização em dobro para o
caso de suicídio, o ministro relator, Ari Pargendler (hoje presidente do
STJ), afastou as alegações da seguradora. “Se o contrato de seguro
prevê a indenização em dobro para o caso de acidente pessoal, o suicídio
não premeditado, que dele é espécie, está abrangido pelo respectivo
regime”, disse o ministro.
Embriaguez
Quando
o segurado contrata seguro de vida, dirige bêbado e morre, o
beneficiário perde ou não o direito à cobertura? Em ação de cobrança
proposta por uma viúva contra a seguradora, ela afirmou que o ex-marido,
que possuía a apólice de seguro de vida em grupo, envolveu-se em
acidente automobilístico, em decorrência do qual faleceu. Apresentou à
empresa a documentação necessária para o pagamento da indenização.
Posteriormente,
a empresa informou que o pagamento referente à garantia básica, no
valor de R$ 71.516,99, já estava sendo providenciada. Comunicou, no
entanto, que não seria possível o pagamento da Garantia por Indenização
Especial por Acidente, em vista da comprovação de que o segurado
encontrava-se alcoolizado (26,92 dg/litro), o que excluiria a
possibilidade da indenização.
Na ação, ela afirmou que a simples
alegação de embriaguez não pode servir de justificativa para o não
pagamento da indenização. Para o advogado, a empresa deveria comprovar
cabalmente o nexo causal entre a bebida e o acidente, e não se ater a
meras conjecturas. “Ainda que tenha ocorrido o nexo causal, não houve
voluntariedade do condutor em provocar o acidente”, acrescentou.
A
seguradora contestou dizendo que a viúva não faz jus à cobertura
especial por morte acidentária, que consiste em um adicional de 100% da
garantia básica, visto que o contrato traz como causa de exclusão
expressa do pagamento a configuração da embriaguez do segurado,
causadora do sinistro. Alegou ainda que a indenização relativa à
cobertura básica já havia sido devidamente paga, conforme reconhecido
pela viúva.
Em primeira instância, o pedido foi julgado
improcedente, considerando-se indevido o pagamento da indenização. A
viúva apelou, mas o Tribunal de Alçada de Minas Gerais negou provimento
ao recurso, mantendo a sentença.
No recurso especial para o STJ
(REsp 774.035), a viúva alegou que o boletim de ocorrência e o exame de
corpo de delito não seriam suficientes para provar o nexo de causalidade
entre a embriaguez do segurado e o acidente que o vitimou. “O ônus de
provar o nexo de causalidade entre a embriaguez do segurado e o acidente
automobilístico era da seguradora, visto tratar-se de fato impeditivo
do direito da viúva”, alegou a defesa.
Relator do caso, o
ministro Humberto Gomes de Barros destacou que a embriaguez do segurado,
por si só, não exclui direito à indenização securitária. Segundo ele, a
cláusula restritiva contida em contrato de adesão deve ser redigida com
destaque a fim de permitir ao consumidor sua imediata e fácil
compreensão. “O fato de a cláusula restritiva estar no meio das outras,
em negrito, não é suficiente para atender à exigência do artigo 54,
parágrafo 4º, do Código de Defesa do Consumidor”, disse o ministro.
Nexo causal
Em
outro caso (REsp 1.053.753), após a morte do marido, em novembro de
2002, exame de teor alcoólico comprovou a substância no sangue e a
seguradora negou o pagamento à viúva, proprietária do automóvel
sinistrado. Na ação, a defesa da viúva afirmou que não foi observado o
contraditório em relação ao exame, bem como a perícia no local e, ainda,
que a proprietária do veículo não concorreu para o evento danoso ou
para aumentar os riscos do sinistro.
Em primeira instância, a
ação foi julgada improcedente. Na apelação, a defesa sustentou que ela
não tinha como saber que o marido estava bêbado, inclusive porque
utilizava medicamentos incompatíveis com bebida alcoólica. Segundo
argumentou, o condutor do veículo, terceiro, poderia ter ingerido bebida
alcoólica no trajeto de sua residência até seu destino. O Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul negou provimento à apelação e a defesa
recorreu ao STJ, afirmando ter havido quebra do contrato firmado entre
as partes, na medida em que foi provado o agravamento do risco de
acidente por estar o condutor do veículo embriagado.
No recurso
especial, a defesa apontou negativa de vigência ao artigo 1.454 do
CC/1916, sob o fundamento de ter havido apenas presunção e não provas
quanto ao agravamento do risco; que não foi provado o nexo causal entre o
acidente e a embriaguez, sendo devida a cobertura securitária; que o
fato de haver condução do veículo por pessoa supostamente embriagada não
é causa de perda do seguro, ou seja, a prova é necessária.
“Constata-se
que a fundamentação do julgador foi de haver quebra do contrato de
seguro por estar comprovada a embriaguez do motorista, ou seja, que
havia 17 dg de álcool etílico por litro de sangue no motorista e que
isso já foi o suficiente para criar uma situação de risco, além do
simples acaso”, considerou, inicialmente, o ministro Aldir Passarinho
Junior, relator do caso.
O ministro entendeu que a cláusula
excludente da responsabilidade não é abusiva, e que compete ao segurado
evitar o agravamento dos riscos contratados, nos termos do artigo 1.454
do Código Civil, sob pena de exclusão da cobertura. “Não vejo nulidade
na cláusula em comento. O que depende é a circunstância concreta em que
ela é aplicada para efeito de afastamento do dever de indenizar”,
assinalou.
Segundo observou o relator, o acórdão recorrido não
afirmou, peremptoriamente, que a causa do acidente foi a embriaguez, mas
sim que não deve a seguradora cumprir o acordado pelo fato de o
motorista estar embriagado.
“Como visto nos precedentes, o só
fato da ingestão de álcool não conduz ao afastamento da obrigação de
indenizar, porquanto a cobertura securitária objetiva, precisamente,
cobrir os danos advindos dos acidentes, e não se espera que tais
sinistros sejam, sempre, causados por terceiros. Em grande parte
provocam-nos os próprios segurados, que, cautelosamente, se fazem cobrir
pelo pagamento de um oneroso prêmio”, acrescentou.
Embriagado, não
Em
outro caso (REsp 595.551), a Justiça gaúcha considerou evidente no
processo que foi o estado de alcoolismo do motorista que ocasionou o
acidente. Segundo informações do hospital que o atendera na noite do
acidente, ele se apresentava alcoolizado, depois de passar a noite
inteira do Reveillon tomando cerveja numa pizzaria da cidade.
Caracterizada a culpa grave do segurado, o Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul afastou qualquer obrigação de indenizar por parte da
seguradora.
No STJ, o segurado alegou que alcoolizado é
diferente de embriagado, sendo que o primeiro estado não constitui
motivo para o não pagamento do seguro, porque a ingestão de bebida
alcoólica não implica necessariamente agravamento do risco. Argumentou
que não foi feito exame sanguíneo e o diagnóstico decorreu apenas da
aparência do autor, que, após a batida, apresentava tonturas e outras
sequelas decorrentes do acidente em si.
A jurisprudência foi
mantida, afastando-se a perda da cobertura para o segurado. “Embora
tenha constado do laudo de atendimento hospitalar que o segurado se
apresentava alcoolizado e com escoriações, não foi feita a prova da
quantidade de álcool que portava no sangue nem se afirmou,
peremptoriamente, que a causa exclusiva do acidente foi a embriaguez do
motorista”, concluiu o ministro Aldir Passarinho Junior, relator do
caso.
Coordenadoria de Editoria e Imprensa
A notícia refere-se aos seguintes processos:
http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=105077&utm_source=agencia&utm_medium=email&utm_campaign=pushsco
19/03/2012 |