Uma decisão recente da 1ª Turma do Supremo
Tribunal Federal (STF) permite que contribuintes sejam processados
criminalmente e presos por sonegação antes mesmo do término da discussão
administrativa da dívida fiscal. O julgamento chama a atenção de
advogados, pois contraria um entendimento consolidado em 2009 pela
própria Corte: o de que a ação penal por crimes tributários só pode ter
início depois de concluído o processo administrativo, em que órgãos
vinculados ao Fisco se posicionam quanto à existência ou não do débito.
Segundo a 1ª Turma, o cabimento da ação penal, de forma independente
da esfera administrativa, deve ser avaliado caso a caso. Especialistas
consideram que, se o entendimento prevalecer, resultará em um aumento
dos processos criminais contra quem recebe autuações fiscais.
"Foi uma construção jurisprudencial, não está na lei", justificou ao
Valor o ministro Marco Aurélio Mello, relator do processo, ao comentar o
fato de a decisão da 1ª Turma contrariar a jurisprudência do Supremo.
"Há situações em que o débito fiscal salta aos olhos. Então, não dá para
potencializar e generalizar. Temos que observar essa jurisprudência com
muita cautela, e distinguindo as hipóteses. O precedente é salutar",
concluiu. O voto de Marco Aurélio foi seguido pelos ministros Cármen
Lúcia e Luiz Fux. Já o ministro Dias Toffoli se posicionou de forma
contrária.
A decisão da 1ª Turma ocorreu no julgamento de um habeas corpus
apresentado por um empresário do Espírito Santo, preso desde 2010 em
Vila Velha. Ele foi condenado pela Justiça Federal a sete anos de prisão
semi-aberta por sonegar Imposto de Renda.
Segundo a Receita Federal, o empresário deixou de declarar uma
movimentação financeira de mais de R$ 3 milhões nas declarações de IR de
1999 a 2001. A Receita lançou um auto de infração cobrando uma dívida
de R$ 9,8 milhões - incluindo o imposto e multas aplicadas quando se
verifica a ocorrência de fraude.
O auto de infração foi encaminhado ao Ministério Público, que
denunciou o empresário em 2003 por crime contra a ordem tributária,
dando início ao processo penal. Mas o débito só foi inscrito em dívida
ativa no ano seguinte - indicando a conclusão definitiva dos órgãos
administrativos de que o imposto era realmente devido. A sentença
judicial condenando o empresário foi proferida depois desse lançamento.
No habeas corpus, o empresário argumenta que a ação penal seria nula,
pois só poderia ter sido apresentada após a conclusão do trâmite
administrativo. A defesa mencionou a Súmula Vinculante nº 24 do Supremo,
editada em 2009, segundo a qual não há "crime material contra a ordem
tributária" antes do "lançamento definitivo do tributo."
Para o ministro Marco Aurélio, no entanto, o processo penal não pode
estar sempre condicionado ao fim do procedimento administrativo. Isso
não deveria ocorrer, de acordo com ele, quando há crimes formais (como a
apresentação de documentos falsos) ou se houver provas suficientes de
sonegação. "Se você pegar os precedentes desse verbete [da Súmula 24],
todos foram formalizados a partir da necessidade da apuração do débito."
Para ele, a jurisprudência atual do Supremo criou "uma formalidade para
chegar-se à persecução criminal". "Não se pode sair batendo carimbo e
entendendo que todo caso em que a base da persecução seja tributo ou
transgressão da norma tributária há necessidade de esgotar-se antes a
esfera administrativa. A regra é a independência das instâncias
administrativa, cível e penal", afirmou.
Advogados tributaristas e criminalistas veem o precedente com
preocupação. "Uma situação grave seria ter uma condenação na ação penal
e, depois, uma decisão administrativa dizendo que não havia necessidade
de tributação. Nesses casos, quem vai indenizar o contribuinte?",
questiona o advogado Dalton Miranda, consultor do Trench, Rossi e
Watanabe. Para o advogado Antenor Madruga, do Barbosa, Müsnich &
Aragão, a decisão traz insegurança jurídica. "O próprio Supremo edita
uma súmula para trazer segurança na interpretação, mas pouco tempo
depois a turma flexibiliza", afirma.
De acordo com o advogado Maurício Silva Leite, presidente da Comissão
de Cumprimento de Penas da seccional paulista da Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB-SP), o Ministério Público vem apresentando representações
criminais contra contribuintes que devem tributos, mesmo quando não há
ocorrência de crime. Para ele, caso prevaleça, o entendimento da 1ª
Turma agravaria a situação. "Se isso ocorrer, haverá uma instauração
muito maior de inquéritos policiais e ações penais contra contribuintes
por crime contra a ordem tributária. Mas, no futuro, ele pode ganhar a
discussão tributário e sofrer um processo penal injusto."