A
dinâmica das sociedades mercantis é intensa. Em poucos anos, mudam-se
paradigmas de mercado, novos negócios surgem, outros são defenestrados
sem piedade; antigos amigos tornam-se desafetos mortais, sócios tidos
por sua lisura chegam a ludibriar seus pares, sócios convalescem,
morrem, enlouquecem ou simplesmente alçam-se a novos rumos de vida.
Eis
o porquê dos assuntos “dissolução societária” e “apuração de haveres do
sócio” firmarem-se como temas tão atuais, assim como palpitantes, no
direito empresarial moderno.
Impossível mirar de relance o tópico sem tocar em palavras-chaves do ramo, como goodwill (originário do direito anglo-saxão e traduzido literalmente como “freguesia”), aviamento (do direito italiano) ou fundo de comércio (do francês founds de commerce). O goodwill of a trade
ou o sobrevalor intangível da empresa através do tempo é matéria
pacífica para fins de apuração dos haveres de uma sociedade mercantil,
amplamente lecionada nos bancos das faculdades de Direito, encontrando
guarida nos brilhantes ensinamentos de Fábio Ulhoa Coelho e Rubens
Requião, entre outros, além de contabilistas de truz.
O cálculo do goodwill,
ante a evolução patrimonial da sociedade empresária – ente jamais
estático – está relacionado e representa o conjunto de outros ativos
intangíveis e não mensuráveis individualmente, como no caso da
tecnologia, capital intelectual (por exemplo, direitos autorais),
estoques comercializáveis, localização, acesso a mercados, fidelização
da clientela e detenção de processo peculiar de produção técnica e
comercial (incluindo os seus contratos), que excedem à soma dos valores
líquidos lançados no balanço patrimonial da empresa.
Mister faz-se
lembrar, nos dizeres de Rubens Requião, que “os bens corpóreos e
incorpóreos conjugados no fundo de comércio não perdem a um deles sua
individualidade singular, embora todos unidos integrem um novo bem. Cada
um mantém sua categoria jurídica própria”[1].
Vale
ressaltar que, em nenhum momento, iguala-se o fundo de comércio ao
patrimônio da sociedade empresária. Posto isso, passamos a trazer o
conceito mais adequado de aviamento. O sócio agrega aos bens da
sociedade um sobrevalor, decorrente de alguns fatores. O cálculo
conjunto alcança, então, um valor de mercado superior ao cálculo
isolado. Dentro da perspectiva de que, fora do âmbito conceitual, é de
difícil visualização, sobre as diferenças entre aviamento e do fundo de
comércio, traz Fábio Ulhoa Coelho um conceito mais adaptado às condições
reais da apuração de haveres sociais:
O
valor agregado ao estabelecimento é referido, no meio empresarial, pela
locução inglesa goodwill of a trade, ou simplesmente goodwill. No meio
jurídico, adota-se ora a expressão ‘fundo de comércio’ (derivado do
francês founds de commerce, e cuja tradução mais ajustada seria, na
verdade, ‘fundos de comércio’), ora ‘aviamento’ (do italiano aviamento),
para designar o sobrevalor nascido da atividade organizacional do
empresário. Prefiro falar em ‘fundo de empresa’, tendo em vista que o
mesmo fato econômico e suas repercussões jurídicas se verificam na
organização de estabelecimento, em vista que o mesmo fato econômico e
suas repercussões jurídicas se verificam na organização de
estabelecimento de qualquer atividade empresarial[2].
Mostrou-se
comprovado, então, que elementos como patentes de invenção e de modelos
de utilidade, marcas registradas, propriedade industrial, nome de
estabelecimento, ponto comercial, clientela, panteão de fornecedores e
condições creditórias na praça, entre outros, são elementos incorpóreos
que influenciam a determinação do sobrevalor citado, do dito lucro
diferenciado. Em outras palavras: não é apenas da organização dos bens
materiais que é determinado o aviamento, mas também o conjunto dos bens
imateriais ou incorpóreos, objetos de grande consideração em processos
avaliatórios em geral. Não basta a análise dos elementos patrimoniais em
isolado ou mesmo em subconjuntos tão somente. É apenas do cálculo
conjunto que visualizamos a existência de valores além do cálculo
isolado, que caracterizam o aviamento e o fundo de comércio.
Os
modelos de avaliação tradicionais baseados em demonstração de resultados
e lucros encontram críticas, por exemplo, do contabilista Eliseu
Martins[3], que assim comenta as severas limitações do modelo em voga:
Na realidade, apesar de aceito pelo mercado, observamos limitações nesse modelo adotado, tais como:
1.
Considera o lucro contábil imediato, esquecendo-se que o investimento
protrai-se no futuro e tem base no passado (quando tem);
2. Ignora o valor do capital no tempo e os riscos; e
3. Considera implícita a idéia de eficiência do mercado.
Por esta falha metodológica, o conceito de goodwill
incorporou-se à doutrina nacional como método de apuração de liquidação
(parcial ou total) de sociedades mercantis, sejam elas brasileiras,
estrangeiras, de capital aberto ou fechado.
O conceito é muito
simples e vamos recorrer à metáfora para melhor explicá-lo: quando se
planta lírios ou frutas, num charco dos mais asquerosos, o jardineiro
drena o excesso d’água, coloca adubo, despeja terra, eventualmente
fertilizante, planeja a distribuição física das sementes, investe seu
tempo e dinheiro e aguarda até que o sol, a chuva e o tempo façam o seu
trabalho, e até que o jardim forme-se e esbanje a beleza das flores. Com
uma sociedade mercantil, algo semelhante acontece, com a diferença de
que não se buscam flores, mas lucros.
As disposições a seguir são
da lavra do perito contábil Orivaldo João Busarello, aprovada com
louvores pelo Conselho Regional do Paraná; São, na verdade, dados
provenientes de sua tese de doutorado:
O
goodwill é o valor que a empresa possui, que sobrepõe o seu valor
contábil ou seu valor contábil ajustado. O goodwill representa o valor
dos ativos intangíveis de uma empresa, além daqueles tangíveis.
Para Shmidt e Santos:
Goodwill
é o termo utilizado, tanto nas normas internacionais quanto nas
norte-americanas, para representar um conceito similar nas normas
brasileiras ao ágio que surge na aquisição dos investimentos avaliados
pelo método da equivalência patrimonial com fundamento econômico em
lucros futuros [4].
Assim, goodwill
pode ser considerado como um excesso de valor em um processo de
avaliação. Muitos valores intangíveis que compõem o goodwill não
aparecem na contabilidade tradicional, como o próprio modelo de negócio e
os projetos desenvolvidos pelo sócio no tempo em que se dedicou à
sociedade. No entanto, contribuíram com adições ao valor da empresa
comparativamente a outras do mesmo segmento. Exemplos destes valores são
a carteira de clientes, a liderança, a tecnologia e a competitividade
no mercado, as marcas, as alianças estratégicas formalizadas, o know how legado etc.
Neste tocante, Wernke destaca, sob o prisma histórico, que:
A
importância dos ativos intangíveis há muito vem sendo considerada pelos
teóricos da ciência contábil. Neste sentido, diversos estudos mostram a
evolução da literatura envolvendo a sistemática de reconhecimento e
mensuração dos ativos intangíveis pela contabilidade, denotando que essa
preocupação remonta há séculos, embora trabalhos mais consistentes
sobre o tema passaram a aparecer no final do século XIX[5].
Martinho Maurício Gomes de Ornelas, badalado contabilista da área e autor do livro Avaliação de Sociedades,
da editora Atlas, dedica o capítulo 7 inteiro de sua obra sobre a
apuração de haveres em processos judiciais ao goodwill. Ele trata os
conceitos de goodwill apresentados e apreciados na ordenação jurídica,
referenciando autores de renome, apresentando classificações para o
goodwill (comercial, pessoal, profissional, industrial, financeiro,
etc.), além de abordagens como a de goodwill adquirido e não adquirido e
as fórmulas de cálculo para a determinação daquilo que nominou de
“superlucros”.
Ornelas ainda menciona que “a avaliação do
acervo patrimonial, pelo valor econômico de cada um de seus componentes,
não faz desaparecer o denominado goodwill tradicional”[6].
Mas
a questão não termina por aí: Ornelas propõe diversos modelos para a
apuração dos haveres da sociedade e do goodwill, entre eles, o clássico
(o valor da empresa é igual à soma do valor seus ativos líquidos e do
seu ativo intangível); o modelo simplificado dos peritos europeus, o
método indireto, o modelo de compra de lucros anuais e o modelo de taxa
de risco relativo e de risco livre.
Além desses modelos baseados no goodwill,
há outros mais tradicionais baseados no fluxo de caixa descontado; no
fluxo de caixa livre; no modelo de múltiplos de vendas e no modelo do
valor de dividendos, entre muitos outros.
Nos tribunais
Sobre a aceitação do critério de goodwill para avaliação dos
haveres do sócio excluído, falecido ou que se retirou, na jurisprudência
pátria é pacífica, conforme os arestos abaixo colacionados e acórdãos
alhures.
O TJ do Rio de Janeiro, por exemplo, já se pronunciou em caso análogo, da seguinte forma:
“17004965
– SOCIEDADE POR COTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA – DISSOLUÇÃO PARCIAL
DA SOCIEDADE – RETIRADA DE SÓCIO – APURAÇÃO DE HAVERES DE SÓCIO
DISSIDENTE ... É assegurado ao sócio retirante a maior amplitude na
apuração de seus haveres, que devem ser calculados com base em valores
reais de mercado, atualizados até a data do efetivo pagamento, incidindo
sobre todos os bens que compõem o ativo social da empresa, aí
compreendidos os corpóreos (móveis, imóveis, equipamentos, veículos,
etc.) e incorpóreos (fundo de comércio, ponto, marca, patente, etc.),
mesmo sobre as ações que a sociedade detenha em outra empresa
controlada, que também deverão ser avaliadas pelo valor real,
considerados igualmente o seu ativo, e não pelo valor contábil. (TJRJ –
AC 4295/97 – (Reg. 270298) – Cód. 97.001.04295 – RJ – 6ª C.Cív. – Rel.
Des. José Affonso Rondeau – J. 25.11.1997).”
O Tribunal de Justiça
do Distrito Federal acompanha o entendimento de seus pares do Rio de
Janeiro, como deve-se observar no item IV do despacho exarado pelo nobre
desembargador a seguir:
DIREITO COMERCIAL. SOCIEDADE EMPRESÁRIA. DISSOLUÇÃO PARCIAL. APURAÇÃO DE HAVERES. RECURSO PROVIDO. MAIORIA.
I
- dissolução é vocábulo que comporta dupla exegese, significando, em
seu sentido lato, a extinção da pessoa jurídica, isto é, o término da
personalidade jurídica da sociedade mercantil, podendo, ainda, em
sentido estrito, traduzir-se no ato que dá origem ao processo de
extinção, deflagrando-o, ou, ainda, que desvincula, da sociedade, um dos
sócios.
II - verifica-se a dissolução
parcial da sociedade quando existente dissidência entre os sócios ou
entre eles e os sucessores de um deles, mostrando-se inviável, em razão
dos conflitos, a manutenção da sociedade nos moldes em que se acha.
III
- a morte de sócio é causa de dissolução parcial, posto que seus
sucessores não estão obrigados a ingressar na sociedade, contra as suas
vontades, sob pena de obrigar-se os herdeiros do sócio falecido a
permanecerem, ainda que não o desejem, no quadro associativo, o que
contraria não só o ordenamento jurídico, como a lógica, haja vista não
se coadunar com a razão e o bom senso compelir alguém a manter-se
associado a qualquer empreendimento que seja.
IV
- a apuração de haveres é procedimento que se segue à dissolução
parcial, colimando a identificação do quantum devido pela sociedade ao
sócio desvinculado, ao qual assiste direito à percepção de valor
equivalente ao que receberia se versasse a hipótese de dissolução total,
correspondendo essa importância ao valor patrimonial de suas cotas, e
não o nominal ou o de mercado, ou seja, calca-se no patrimônio liquido
da empresa e não no preço que o titular da cota lograria na sua
alienação (valor de mercado) ou que resultaria da divisão do valor do
capital social pelo número de cotas (valor nominal).
(TJ/DF – 1ª T. Cív., Ap. Cív. nº 20010110604050, Rel. Des. Hermenegildo Gonçalves, DJ 05.08.2004, p. 26)
Aqui,
no Tribunal de Justiça de São Paulo, colacionamos os seguintes arestos,
que também caminham no sentido de determinar a apuração, ao sócio
excluído ou que se retirou, suas cotas com a incorporação do fundo de
comércio e do goodwil. Vejamos:
DISSOLUÇÃO
PARCIAL DE SOCIEDADE – Apuração de haveres – Inocorrência de
cerceamento defensório – Apuração determinada pelo método do fluxo de
caixa descontado (GOODWILL), visando à aferição do potencial de geração
de riqueza da empresa – Cabimento (TJ/SP – 6ª. Câmara de Direito
Privado. Apelação 994.07.019707-0, Rel. Des. Sebastião Carlos Garcia, DJ
18.3.2010).
Mais uma além daquela:
DISSOLUÇÃO PARCIAL
DE SOCIEDADE – Apuração de haveres que deve abranger o patrimônio
Incorpóreo – Admissibilidade do critério do goodwill relativo à
potencialidade da empresa em gerar lucros (...) (TJ/SP – 6ª. Câmara de
Direito Privado. Apelação 134.960-4/8-00. Rel. Des. Sebastião Carlos
Garcia).
O próprio STJ manifesta-se no sentido de permitir o
cálculo do patrimônio incorpóreo aos haveres do sócio falecido ou
excluído, evitando que os demais sócios locupletem-se às suas custas:
RECURSO
ESPECIAL – SOCIEDADE POR COTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA – SÓCIO
FALECIDO – DISSOLUÇÃO PARCIAL – APURAÇÃO DE HAVERES – HERDEIROS –
CPC/39, ART. 668 RECEPCIONADO PELO ART. 1.218, VII DO CPC VIGENTE – I –
‘Se a morte ou retirada de qualquer dos sócios não causar a dissolução
da sociedade, serão apurados exclusivamente os seus haveres, fazendo-se o
pagamento pelo modo estabelecido no contrato social, ou pelo
convencionado, ou ainda, pelo determinado pela sentença’ (CPC/73, art.
668 c/c art. 1.218, VII do CPC/39). II – A apuração de haveres, no caso
de dissolução parcial de sociedade de responsabilidade limitada, há de
ser feita de modo a preservar o valor devido aos herdeiros do sócio, que
deve ser calculado com justiça, evitando-se o locupletamento da
sociedade ou dos sócios remanescentes. III – Recurso especial conhecido e
provido. (STJ – REsp – 282300 – RJ – 3ª T. – Rel. Min. Antônio de Pádua
Ribeiro – DJU 08.10.2001 – p. 00212).
E por último, colaciona-se a
brilhante explanação do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, no RESP
908173, publicado em 22 de fevereiro de 2011, no qual aventa a
necessidade do cálculo do goodwill na apuração de haveres das Casas
Pernambunas em relação a sócios minoritários dissidentes. Acompanhemos:
RECURSO ESPECIAL Nº 908.173 - PE (2006/0255358-7)
RELATOR : MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO
RECORRENTE : ARTHUR LUNDGREN TECIDOS S/A CASAS PERNAMBUCANAS
RECORRIDO : MARIA DE LOURDES MANHKE E OUTROS
RECURSO ESPECIAL. APURAÇÃO DE HAVERES. DISSÍDIO NÃO CONFIGURADO.
COTEJO
INEXISTENTE. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA ENTRE OS ARESTOS
CONFRONTADOS. APURAÇÃO DE HAVERES. INCLUSÃO DO FUNDO DE COMÉRCIO.
POSSIBILIDADE. RECURSO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO.
1.
Não demonstrada a divergência pretoriana conforme preconizado nos arts.
541, parágrafo único, do CPC, e 255, § 1º, a, e § 2º, do RISTJ,
deixa-se de conhecer o recurso especial.
2.
A jurisprudência desta Corte Superior firmou-se no sentido de que o
critério da apuração de haveres, no caso de sócio que se retira da
sociedade, será semelhante ao da dissolução total, ou seja, incluindo-se
na avaliação de seus haveres o fundo de comércio, sob pena
enriquecimento dos demais sócios em prejuízo do sócio falecido.
3. Recurso a que se nega seguimento.
A
união dos sócios numa sociedade mercantil guarda paralelos
interessantes com o matrimônio. A empolgação inicial, a confiança entre
os associados, a entrega mútua em torno de um fim comum, a assistência
recíproca. São todos tópicos que se acham presentes em ambos os
institutos. Igualmente, a possibilidade de desinteligência, a perda do
tesão, as brigas e separação também são uma realidade possível e até
comezinha.
Para o empresário que deseja salvaguardar sua paz
pessoal e profissional e não ver um patrimônio construído a ferro e fogo
soçobrar, o ideal é, a exemplo do planejamento sucessório e dos pactos
antenupciais do direito de família, tão em voga, que se vislumbrem as
contingências para as hipóteses do insucesso do negócio ou mesmo de
contendas entre os demais sócios. Isso se faz especialmente por meio de
um contrato social bem estudado e redigido, que reduza a margem para a
insegurança, prevendo e planificando os critérios avaliatórios e as
ações no caso de uma dissolução societária, qualquer que seja o seu
motivo.
[1] REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, São Paulo: Saraiva, v. 1, p. 270, 2003.
[2] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, v.1, p. 97-98.
[3] MARTINS, Eliseu. Avaliação de empresas: da mensuração contábil e econômica. São Paulo: Atlas, 2001, p. 270.
[4] SHIMIDT, Paulo; SANTOS, José Luis dos. Avaliação de ativos intangíveis. São Paulo: Atlas, 2002, p. 153
[5] WERNKE, Rodney. Identificação de potenciais geradores de intangíveis. Florianópolis, 2002. (Tese de Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina.
[6] ORNELAS, Martinho Maurício Gomes de. Avaliação de Sociedades. São Paulo: Atlas, 2001, p. 123.