A
razão da escolha de um tema ligado à tributação internacional para a
coluna de estreia nesse espaço mensal está na importância que a matéria
tem ganhado ao longo dos últimos anos, conforme revelam a intensa
produção legislativa[1] e o consequente aumento de processos administrativos e judiciais a esse respeito.
Tal
fato não pode deixar de ser visto como reflexo direto da inserção do
Brasil como um dos principais atores no mercado global, seja na condição
da grande exportador de matérias-primas, seja na condição de receptor
de investimentos nos mercados financeiro e de capitais e nas (urgentes)
obras de infra-estrutura, seja na condição de importante investidor em
terceiros países através das multinacionais brasileiras.
O marco
inicial dessa produção legislativa pode-se identificar na edição da Lei
9.249, de 26 de dezembro de 1995, que, rompendo com uma antiga tradição
das regras de tributação pelo imposto de renda então adotadas no país,
veio substituir o princípio da territorialidade pelo princípio da
universalidade (world wide income).
Desse modo os limites objetivos que a tributação da renda observava — “o lucro proveniente de atividades exercidas parte no país e parte no exterior somente será tributado na parte produzida no país”(art.
268 do RIR/80) — deixaram de ter relevância para fins tributários,
elegendo-se como conexão necessária e suficiente para autorizar a
tributação brasileira o elemento subjetivo da titularidade da renda.
A
partir de então, os rendimentos obtidos pelas atividades exercidas por
empresas brasileiras diretamente ou através de filiais e sucursais sem
personalidade jurídica no exterior, que antes estavam fora do alcance da
tributação brasileira, por se referirem a renda produzida fora do
território nacional, passaram a poder ser tributados pelo Brasil.
Assim,
por exemplo, passaram a poder ser tributados no Brasil os juros de uma
aplicação financeira realizada por uma pessoa jurídica brasileira em
títulos da dívida publica norte-americana, os rendimentos de contratos
de prestação de serviços de engenharia executados no Iraque, os ganhos
de capital obtidos na venda de uma fazenda situada no Uruguai, etc.
Ocorre
que a Lei 9.249/95 não se limitou a tributar os rendimentos obtidos
pela atividade direta exercida no exterior, estendendo seus tentáculos
para alcançar também os lucros obtidos por sociedades estrangeiras. Com
efeito, o artigo 25 da Lei 9.249/95 veio encampar um modelo de tributação extraterritorial,
ao estabelecer que os lucros obtidos por sociedades controladas e
coligadas no exterior de pessoas jurídicas brasileiras deveriam ser adicionados ao lucro líquido dessa última, na proporção da sua participação, independentemente da sua efetiva distribuição.
Assim,
por exemplo, os lucros obtidos por uma empresa domiciliada na
Argentina, controlada ou coligada de uma empresa brasileira, passaram a
estar sujeitos ao imposto de renda brasileiro por ocasião da sua mera
apuração, mesmo que não sejam distribuídos ao controlador brasileiro
como dividendos, destinando-se à capitalização ou ao reinvestimento.
Tal regra é contrária ao princípio da universalidade
o qual, conquanto permita, sem sobra de dúvidas, a tributação dos
dividendos eventualmente distribuídos pelas sociedades estrangeiras, não
autoriza, de forma alguma, a tributação extraterritorial de renda
alheia, com total desconsideração da personalidade jurídica do titular
do lucro.
Na verdade, a lei brasileira adotou um regime de transparência fiscal internacional,
eis que o lucro de pessoa jurídica estrangeira será tributado
integralmente, antes do desconto dos impostos locais, por adição direta
ao lucro da empresa nacional. Mas tal transparência é apenas parcial,
uma vez que a mesma lei proíbe a compensação no Brasil dos prejuízos e
perdas eventualmente apurados pelas empresas estrangeiras (art. 25, § 5º
da Lei n.º 9.249/95).
Não se desconhece que há em inúmeros países
legislações que também submetem a tributação automática lucros de
controladas estrangeiras independentemente da sua distribuição. São as
chamadas leis do tipo “CFC”, acrônimo da expressão inglesa Controlled Foreign Corporation, que tem sua origem nas normas da legislação norte-americana de 1963 (“Subpart F”).
Tais normas, no entanto, não alcançam a totalidade dos lucros de
controladas e coligadas em quaisquer países, antes se limitam a alcançar
rendimentos passivos (juros, aluguéis, royalties) obtidos em países de nula ou muito baixa tributação.
Trata-se,
na verdade, de normas antielisivas que têm por objetivo impedir o
diferimento da tributação de certas categorias de rendimentos. Tal
diferimento seria obtido com a deslocalização, para uma jurisdição de
baixa ou nula tributação, da titularidade à percepção de que, caso
recebidos pela pessoa jurídica domiciliada no país de tributação
regular, por assim dizer, seriam nele automaticamente gravados, ao passo
que sendo atribuídos a uma pessoa jurídica distinta, domiciliada num
outro país, apenas poderão ser tributados no primeiro quando da
distribuição dos dividendos.
A lei brasileira, todavia, não é do
tipo “CFC”, pela singela razão de que não é excepcional e sim geral,
aplicando-se indistintamente a todas e quaisquer controladas no
exterior, independentemente do local de sua sede e da natureza dos
rendimentos obtidos.
São inúmeras as discussões jurídicas a
respeito da validade jurídica do sistema de tributação em questão, sendo
impossível discorrer com a necessária profundidade, analisando todos os
ângulos de argumentação, nesse curto espaço, sem cansar demasiadamente o
leitor[2].
Apenas
para se ter noção da complexidade da matéria, está sendo travada na
Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.588-DF, ainda em curso de
julgamento no Supremo Tribunal Federal, a discussão a respeito da
(in)compatibilidade desse sistema com o fato gerador do imposto de renda
consagrado no artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN), que exige a
efetiva aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica da renda.
No
âmbito do Superior Tribunal de Justiça começam a ser proferidas
decisões a respeito da ilegalidade das disposições de atos
administrativos (nomeadamente a Instrução Normativa 213/02) que,
inovadoramente e contra legem (o art. 25, § 6º da Lei n.º
9249/95), prevêem a incidência da tributação sobre o resultado positivo
da equivalência patrimonial. São exemplos dessas decisões os RESps
1.211.882-RJ e 1.236.779-PR.
Na esfera administrativa, o Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) tem se debruçado a respeito da
compatibilidade ou não do regime de tributação em questão com
disposições de tratados contra a dupla tributação celebrados pelo Brasil
com os países de domicilio das subsidiárias, tratados esses que têm
prevalência de aplicação ex vi do artigo 98 do CTN. Há inúmeras
as decisões do Carf a respeito da matéria, que adotam distintas linhas
de interpretação, das quais citamos como referência os Acórdãos
107-07.532, 108-08.765, 101-95.802, 101-97.070, 1101-00.365 e
1402-00.391.
No domínio específico dos tratados contra a dupla
tributação, é interessante observar que o próprio sistema acabou por
deflagrar um legítimo movimento de proteção das empresas brasileiras
contra a aplicação da lei interna pela opção de investimentos diretos ou
pela localização de holdings em países que celebraram referidos tratados com o Brasil.
Isto
porque referidos tratados que seguem o Modelo da OCDE, contemplam regra
(art. 7º) segundo a qual os lucros obtidos por uma empresa situada num
Estado apenas são tributáveis nesse Estado. Referida regra, que outorga
competência tributaria exclusiva para o país de domicilio da pessoa
jurídica, tem por finalidade assegurar a estabilidade das relações entre
Estados soberanos frente às respectivas e legitimas pretensões de
tributação das operações internacionais.
Ao longo do ano, em
outras colunas, teremos a oportunidade de voltar aos temas, comentando
decisões especificas sobre as questões.
Queremos nesse espaço
inicial chamar a atenção para o efeito perverso de desestímulo ao
investimento brasileiro no exterior pelas nossas multinacionais que o
modelo atual implica.
O regime de tributação em vigor é um
desincentivo ao investimento brasileiro no exterior quando submete ao
imposto de renda no Brasil os lucros não distribuídos de empresas
controladas no exterior que são menos onerados pelo imposto de renda
local ou imposto similar (quando existente).
Tome-se como exemplo
um investimento em país de menor nível de desenvolvimento. Há inúmeras
empresas brasileiras investindo na África (Angola, Moçambique, Guiné,
etc.), nas Américas do Sul e Central (Bolívia, Equador, Nicarágua, El
Salvador, etc.) em países que — precisamente para atrair investimentos —
concedem isenções de imposto temporárias totais ou parciais. Fará algum
sentido que o Brasil se aproprie da renúncia fiscal legítima daqueles
Estados soberanos, tributando pelo IRPJ e CSL combinados de 34%, os
lucros isentados, quando é certo que um dos fatores essenciais para a
viabilidade econômica do projeto reside justamente na exoneração fiscal?
É evidente que não faz qualquer sentido. Trata-se em sombra de dúvidas,
de um grave entrave à expansão das multinacionais brasileiras,
principalmente quando investem em países de menor grau de
desenvolvimento.
Agora imaginem se o Estado alemão impusesse a
tributação automática dos lucros obtidos por uma empresa brasileira,
controlada de empresa alemã, situada na área de atuação da Sudam ou da
Sudene, beneficiando-se, assim, de uma redução de IRPJ e adicionais.
Seria razoável que esse benefício fiscal legitimamente concedido pelo
Estado brasileiro fosse apropriado pelo governo alemão, quando os lucros
obtidos foram (no caso da parcela isenta por determinação legal)
reinvestidos no empreendimento pela pessoa jurídica brasileira? É óbvio
que faltaria razoabilidade ao sistema. Por isso alguns autores[3]
têm considerado que o regime brasileiro, caso fosse encarado como uma
medida antielisiva, violaria o princípio da proporcionalidade, dado o
efeito devastador que produz ao tratar igualmente situações
diferenciadas.
Tudo o que acima se expôs aponta no sentido da
necessidade imperiosa de revisão e reformulação do modelo atual de
tributação dos lucros de empresas controladas no exterior, de modo a
adequá-la às práticas internacionalmente aceitas, de modo a que o quadro
legislativo sirva como incentivo e não desincentivo à expansão dos
investimentos brasileiros no exterior.
[1]
Referimo-nos especialmente às normas de preços de transferência (Lei
n.º 9.430/96), de tributação diferenciada dos países de tributação
favorecida e dos regimes fiscais privilegiados e as normas de
sub-capitalização, (Lei n.º 12.249/10) de tributação de ganhos de
capital de residentes no exterior (Lei n.º 10.833/03), entre outras.
[2] Para maiores desenvolvimentos sobre a matéria cfr. Alberto Xavier, Direito Tributário Internacional do Brasil, 7ª edição, Rio de Janeiro, 2010
[3] Cfr. João Francisco Bianco, “Transparência Fiscal Internacional”, São Paulo 2007, p. 80 e ss.