Em abril de 2009, o juiz da 16ª Vara Federal do Rio de Janeiro
determinou, em sede de liminar, a penhora dos dividendos da Petrobras,
em razão de ação judicial contra a companhia. Conquanto essa decisão
tenha sido revertida dois dias depois pelo Tribunal Regional Federal
(TRF) da 2ª região, a interferência judicial, ainda que a título
precário, indica a possibilidade de discussão quanto à garantia
contratual ser efetivada por meio de registro contábil. Fosse
reconhecida provisão decorrente dessa ação no balanço, talvez a
companhia não gerasse lucro a ser distribuído.
A adoção do IFRS como padrão contábil brasileiro realçou a questão
das garantias contratuais, notadamente aquelas com suporte nas
demonstrações financeiras. As normas contábeis atuais são baseadas no
julgamento e na primazia da substância sobre a forma - que, de tão
intrínseca à contabilidade, deve ter a sua referência expressa excluída
do texto normativo, conforme consulta pública do International
Accounting Standards Board (IASB), o órgão emissor dos IFRS. A aplicação
desses dois "princípios" exerce influência decisiva, por exemplo, na
identificação de bens a serem arrolados em garantia e no cumprimento das
cláusulas de garantia (covenants).
Por força da primazia da substância sobre a forma, um bem deve ser
reconhecido nas demonstrações financeiras da empresa que aufere os seus
benefícios, de um lado, e de outro, assume seus riscos e controles
(artigo 179, IV da Lei nº 6.404, de 1976 - LSA), sendo irrelevante a
transferência jurídica da propriedade. Caso típico é o arrendamento
mercantil financeiro (leasing): na forma, trata-se de um contrato de
aluguel com opção de compra, mas, na essência, representa uma compra
financiada. Dessa forma, um ativo não mais pode ser identificado,
exclusivamente, como o bem de propriedade da empresa, pois isso não é
mais o critério primordial para a classificação contábil.
O IFRS provocou uma mudança estrutural na cultura empresarial brasileira
Considerando que a empresa reconhece como seu ativo um bem que,
juridicamente, é de propriedade de outrem, surge o questionamento sobre a
possibilidade de esse bem ser dado em garantia nos contratos celebrados
pela empresa arrendatária. Ou, de outra parte, questiona-se se seria
permitida a concessão de garantia sobre o "direito de uso", objeto do
contrato de arrendamento mercantil financeiro. Dependendo de como são
resolvidas essas questões, o credor não poderá, de maneira absoluta e
induvidosa, utilizar as demonstrações contábeis do devedor para a
pesquisa de bens que possam garantir o cumprimento do contrato.
Além disso, é comum que cláusulas de garantia (convenants) prevejam a
liquidação antecipada do contrato no caso de descumprimento de algumas
condições. Diversas são as naturezas dessas condições, sendo, algumas
delas, baseadas em informações contábeis. Tais disposições contratuais
podem exigir, dentre várias situações, que o devedor não assuma risco
financeiro (por exemplo, endividamento) acima de um determinado limite
do seu patrimônio líquido (capital social, reservas e lucros) ou de suas
disponibilidades (caixa, aplicação financeira etc.) ou, ainda, que
apresente uma estimada margem de lucro (lucro bruto ou EBITDA).
Em decorrência de o registro contábil ser fundamentado em julgamento
da administração, a maioria das exigências previstas nas cláusulas de
garantia é diretamente influenciada pela percepção que os gestores têm
dos eventos e das operações financeiras que deverão ser informados na
contabilidade. Veja-se, por exemplo, o caso do ajuste a valor presente,
de forma particular, do passivo (dívidas) ou da emissão de títulos
híbridos (como, por exemplo, debêntures perpétuas). Em ambos os casos,
pode acontecer de o registro contábil reduzir a dívida perante terceiros
e aumentar o valor do patrimônio líquido, alterando,
significativamente, o índice de endividamento da empresa - e, dessa
forma, assegurando o cumprimento de certos convenants.
No contexto do IFRS, também marcado pela busca da transparência, deve
ser permitida a discussão sobre os critérios contábeis adotados pelas
empresas a todos os seus usuários (stakeholders). Nesse sentido, deve
ser repensado o dispositivo que impede, a qualquer autoridade, ordenar
diligência para verificar o cumprimento das normas contábeis por uma
determinada empresa (artigo 1.190 do Código Civil). O saudoso Miguel
Reale escreveu que a lei pode ser alterada sem que se mexa em uma
vírgula do seu texto, isso porque há mudança da cultura: a adoção do
IFRS provocou uma mudança estrutural na cultura empresarial brasileira.
Edison Carlos Fernandes, é advogado, doutor em direito pela
PUC-SP, professor da Universidade Mackenzie e da FGV (GVLaw, GVPEC e
GVManagement) e autor do livro "Demonstrações financeiras: gerando valor
para o acionista" (Editora Atlas).
Este é o último de uma série de cinco artigos sobre as novas normas contábeis
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