Anos atrás não se discutia: o imóvel considerado bem de família não
podia ser penhorado pela Justiça para quitar dívidas, caso não estivesse
na lista de exceções previstas em uma lei da década de 90. Hoje, porém,
essa certeza não é absoluta e, a depender da situação, o devedor corre o
risco de perder parte de seu imóvel residencial para honrar seus
débitos.
Ainda há poucas decisões judiciais nesse sentido, que não formam uma
jurisprudência consolidada sobre o assunto. No entanto, já existem
correntes tanto na Justiça comum quanto na trabalhista favorável à
flexibilização da impenhorabilidade do bem de família.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por exemplo, já decidiu pela
penhora de parte de um imóvel onde morava um casal e também funcionavam
duas lojas na parte térrea. Da decisão não cabe mais recurso. Em seu
voto, o relator do caso, ministro Sidnei Beneti, afirmou que já seria
jurisprudência da Corte admitir ser possível a penhora de parte do bem
de família, levando em conta as peculiaridades do caso, quando não
houvesse prejuízo para a área residencial do imóvel utilizada para o
comércio, ainda que sob a mesma matrícula.
A 2ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 4ª Região, no
Rio Grande do Sul, também mandou penhorar um apartamento onde residiam
os sócios de uma empresa devedora de créditos trabalhistas. Apesar de os
sócios morarem no imóvel, os desembargadores entenderam que, ao usar o
endereço como sede da empresa, o apartamento passaria a ter fins
residenciais e comerciais, ao mesmo tempo. Com isso, determinou a
penhora de 30% do apartamento.
Para o advogado especialista em direito empresarial, Ricardo Trotta,
sócio-titular do escritório Ricardo Trotta Sociedade de Advogados, essas
decisões demonstram que tem ocorrido uma flexibilização do conceito de
impenhorabilidade desses bens, principalmente quando o imóvel não é
totalmente utilizado para a moradia da família. Segundo ele, a Lei nº
8.009, de 1990, trouxe lacunas que estão sendo preenchidas pelo
Judiciário. "A Justiça tende a ser cada vez mais rígida com os devedores
para que honrem seus pagamentos", diz.
A Justiça Trabalhista tem também determinado a penhora de imóveis
considerados luxuosos. Há decisões nesse sentido nos Tribunais Regionais
do Trabalho (TRTs) de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Em
um dos casos, o tribunal paulista mandou penhorar a residência onde mora
o ex-sócio de uma empresa em São Paulo, avaliada em cerca de R$ 1,5
milhão. Para a 1ª Turma do TRT, a impenhorabilidade do bem de família,
garantida por lei, não pode conduzir ao que os magistrados chamaram de
"absurdo", ao permitir que o devedor mantenha o direito de residir em
imóvel considerado "suntuoso" e de "elevado valor". Com a venda do bem,
segundo a decisão, seria possível pagar a dívida estimada em R$ 200 mil e
ainda permitir que o devedor adquirisse uma nova "digna e confortável"
moradia.
A 5 ª Turma do TRT de Minas Gerais também determinou a redução à
metade do terreno onde está construída a casa de um empresário com
dívidas trabalhistas. O terreno possui 1.384 metros quadrados. Os
desembargadores entenderam que o desmembramento não desrespeita a
proteção legal ao bem de família, pois o sócio permanecerá com a
propriedade da parte do terreno onde está sua residência.
A tese, porém, ainda não tem sido aceita nos tribunais superiores. Em
decisão proferida em agosto, o TST rejeitou o pedido de penhora de um
apartamento triplex de 500 metros quadrados de um empresário do Rio
Grande do Sul. O bem, no início de 2009, estava avaliado em R$ 420 mil. O
TRT gaúcho tinha determinado a penhora para o pagamento de uma dívida
trabalhista de R$ 6 mil. Mas, os ministros da Subseção 2 Especializada
em Dissídios Individuais (SDI-2) do TST reconheceram a impenhorabilidade
absoluta. Segundo o voto do relator, ministro Caputo Bastos, "é
impenhorável o imóvel da entidade familiar destinada a sua moradia, não
havendo qualquer ressalva quanto ao valor, tampouco quanto à sua
suntuosidade", afirma.
O STJ também tem julgado nesse mesmo sentido. Em novembro de 2010, a
3ª Turma determinou ser impenhorável uma fazenda de café no Estado de
São Paulo, que servia de moradia para um empresário devedor. Para o
relator do processo, ministro Massami Uyeda, o STJ permite a penhora de
parte do imóvel se esse desmembramento não descaracterizar a moradia.
Porém, não tem admitido a penhora simplesmente por se tratar de imóvel
luxuoso.
A segurança que existia com relação à impenhorabilidade desses bens
não existiria mais, na opinião dos advogados Marcos Andrade e Diego
Garcia, do Sevilha, Andrade, Arruda Advogados. Para eles, a
flexibilização tem ocorrido em alguns casos, principalmente quando os
princípios sociais se conflitam, por exemplo, com o direito à moradia e
alimentação.
O advogado trabalhista Túlio Massoni, do Amauri Mascaro Nascimento
Advocacia Consultiva, acredita, no entanto, que as decisões que
relativizam a impenhorabilidade são isoladas. "O TST e o STJ tendem a
rever essas penhoras de imóveis luxuosos, até porque a lei não faz essa
distinção", diz. Para ele, o direito à moradia e os direitos
trabalhistas previstos na Constituição estão no mesmo patamar.