Em artigo anterior publicado nesta ConJur,
abordamos a questão da citação do Estado estrangeiro para responder a
ação no Brasil. Defendi a posição de que se deve sempre determinar a
citação do Estado estrangeiro para que este possa exercer — ou não — o
eventual direito à imunidade de jurisdição. Como se sabe, a imunidade à
jurisdição não é absoluta, não existindo em todos os casos.
No
presente artigo, comparamos essa posição que defendemos com a
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal
Federal.
No Recurso Ordinário 85/RS[1],
relatado pelo ministro João Octávio de Noronha, a 4ª Turma do STJ
entendeu que a comunicação processual ao Estado estrangeiro visa apenas “informar
o ente estrangeiro de que há uma ação ajuizada contra si no âmbito da
jurisdição pátria, convidando-o a dela participar, hipótese em que
deverá renunciar à sua imunidade”. Assim, segundo esse acórdão, não se pode falar em citação, “porquanto não se busca com este ato a angularização da relação jurídica processual”.
Citar, continua o precedente em referência, “significa
chamar ou convocar alguém a juízo, dando-se-lhe notícia da existência
de ação proposta contra si, oportunizando-lhe defender-se. A citação
previne a jurisdição, torna a coisa litigiosa, induz litispendência,
constitui o devedor em mora e interrompe a prescrição”.
Ainda de acordo com esse acórdão, “nenhum
desses efeitos se verifica no presente feito, em razão da imunidade de
que goza o Estado estrangeiro quando se pretende discutir em juízo
questões relativas à sua soberania... Trata-se de comunicação que não
gera ônus e nem produz efeitos em face do Estado estrangeiro, nada
obstante a existência de uma ação, cujos atos processuais, para serem
desenvolvidos, dependem da manifestação do mencionado Estado.
Com
o devido respeito, divergimos da conclusão do STJ. O prosseguimento de
ação contra o Estado estrangeiro somente depende da manifestação do
mencionado Estado quando se verifica, no caso concreto, hipótese de
imunidade de jurisdição. Se não houver imunidade, a ação deve prosseguir
contra o Estado estrangeiro ainda que este seja revel.
É bem verdade que, nesse precedente, o STJ havia considerado, prima facie¸
que o Estado estrangeiro faria jus à imunidade. Entretanto, mesmo na
hipótese de o Estado estrangeiro fazer jus à imunidade, entendo, com a
devida vênia do STJ, que o Estado deveria ser citado e não apenas
“comunicado” para responder à ação contra ele proposta.
Não se
discute que o silêncio do Estado réu não significa renúncia à imunidade
de jurisdição, mas, ao contrário, afirmação dessa prerrogativa. Em
outras palavras, o silêncio do Estado estrangeiro demandado em ação
perante a Justiça nacional deve ser “ouvido” como um exercício do
direito à imunidade.
Uma ação judicial contra Estado estrangeiro
pode transcorrer normalmente, até a sentença final, se, no caso, não se
configurar a imunidade de jurisdição ou se houver ocorrido a renúncia
dessa imunidade. É por essa razão que a sorte da ação contra Estado
estrangeiro não pode ser conhecida pela simples análise da petição
inicial. O ajuizamento de um pedido contra réu soberano não é, por si,
juridicamente impossível.
Ainda que o caso apresentado pelo autor
preencha, visivelmente, os requisitos que caracterizam a imunidade de
jurisdição soberana, deve o juiz chamar o Estado réu a se defender, pois
haverá sempre a possibilidade de sua submissão voluntária. É exatamente
esta a orientação que se extrai de decisão monocrática do ministro
Sepúlveda Pertence na Ação Cível Ordinária para execução de dívida
ativa fiscal proposta pela União (Procuradoria-Geral da Fazenda
Nacional) contra o Consulado Geral da República da Coreia em São Paulo.
Antes de extinguir o processo por ausência de jurisdição, em face da
verificação de evidente imunidade do Estado demandado, determinou o
ministro Pertence a citação do Estado demandado, acatando parecer do
Ministério Público, exarado pelo subprocurador-geral da República Flávio
Giron ([2]):
“Com vista dos autos, opinou pelo Ministério Público Federal o il.
Subprocurador-Geral Flávio Giron, assim ementado o parecer — f. 14:
‘Ação Cível Originária. Execução fiscal movida pela Fazenda Federal
contra Estado estrangeiro. Imunidade de jurisdição. O Estado
acreditante, e somente ele, pode renunciar, se entender conveniente, às
imunidades de índole penal e civil de que gozam seus representantes
diplomáticos e consulares. Parecer no sentido de que seja solicitado ao
Estado estrangeiro manifestação a respeito de sua renúncia à imunidade
de jurisdição’.”
No julgamento da mesma ação, o ministro Celso de Mello,
na linha do ministro Sepúlveda Pertence, também entendeu que antes da
extinção do processo devido ao reconhecimento do afastamento da
jurisdição pela incidência da imunidade, é preciso dar ao réu a
oportunidade de manifestar sua recusa ou aceitação do foro. Todavia, o
ministro Celso de Mello, preferiu, antes de determinar a citação, instar o Estado réu a se pronunciar sobre a sua eventual submissão à jurisdição brasileira([3]):
“Antes de ordenar a citação, no entanto — e atento às implicações
que desse ato podem resultar, em face do que dispõem os Artigos 22 e 30
da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (v., a propósito,
GERALDO EULÁLIO DO NASCIMENTO E SILVA, "A Convenção de Viena sobre
Relações Diplomáticas", p. 107, 2ª ed., 1978, Brasília) -, determino que
se transmita o inteiro teor do presente despacho ao Senhor Ministro de
Estado das Relações Exteriores, para que Sua Excelência inste a
República dos Camarões a pronunciar-se, por intermédio de sua Missão
Diplomática, sobre a sua eventual submissão à jurisdição do Poder
Judiciário brasileiro.”
A solução encontrada pelo ministro Celso de Mello
e também pelo precedente estabelecido pela 4ª Turma do STJ no
julgamento do RO 85, tem o mérito de permitir que a citação — e os ônus
dela decorrentes — somente tenha lugar após a resolução do incidente de
imunidade, quando o juiz já formou sua convicção sobre a propriedade da
recusa à jurisdição. Se rejeitada a alegação de imunidade, o Estado réu
ainda teria oportunidade e prazo para, querendo, contestar a ação.
Porém, entendemos que essa solução provoca desnecessariamente dois
chamamentos do réu para responder à mesma ação, contrariando o princípio
da economia processual. Se ele já foi chamado uma vez, por que chamá-lo
novamente, caso não aceite sua recusa à jurisdição?
É
justa a preocupação de que o incidente de imunidade não exaure o prazo
da contestação. Não se deve exigir que o Estado soberano, crendo ser
imune à jurisdição estrangeira, tenha de, ao mesmo tempo, apresentar a declinatoria fori e
promover as demais defesas preliminares e de mérito para se acautelar
contra a hipótese de que a imunidade pleiteada não seja reconhecida.
Essa cautela seria recomendável se o incidente de imunidade exaurisse o
prazo da contestação. Mas esse problema pode ser evitado aplicando-se
analogicamente ao incidente de imunidade o regime da exceção de
incompetência, especialmente no que diz respeito à suspensão do
processo, nos termos do artigo 265, III, do Código de Processo Civil.
Oposta a exceção de imunidade de jurisdição, o prazo para contestação
seria suspenso e voltaria a correr a partir do momento em que o Estado
fosse intimado da decisão de não acatar a alegada imunidade. Esta é a
solução apontada pela lei argentina de 1995:
ARTICULO 4º - (…)
La interposición de la defensa de inmunidad jurisdiccional
suspenderá el término procesal del traslado o citación hasta tanto dicho
planteamiento sea resuelto.
A resposta do réu soberano pode limitar-se à recusa, expressa ou tácita, do foro (declinatoria fori).
O Estado recusa tacitamente o foro quando silencia e não responde à
citação. Alternativamente, pode recusar expressamente o foro, por
petição ao Juiz ou por nota diplomática enviada ao Ministério das
Relações Exteriores. A recusa expressa é mais cortês com o Estado
acreditante e, mesmo quando dirigida por petição ao Juízo, não implica
abdicação da imunidade, como já teve oportunidade de se manifestar o
ministro Rafael Mayer ao relatar a Apelação Cível 9.684 (caso Lizarda dos Santos v. Embaixada da República do Iraque):
“Pode a autoridade diplomática estrangeira, uma vez citada,
comparecer ao feito, simplesmente, para excepcionar a jurisdição pela
afirmação da sua condição de imune, sem que tal diligência processual
importe em abdicar da extraterritorialidade.”
No direito
comparado, encontramos dispositivos legais expressos reconhecendo que a
alegação de imunidade de jurisdição não deve ser interpretada como
aceitação de jurisdição, especificamente nas leis inglesa, australiana e
argentina.
A recusa do foro por alegação direta ou indireta de
imunidade de jurisdição cria o que chamamos de incidente processual de
imunidade. Antes que o processo tenha continuidade, deve o juiz, nos
próprios autos, resolver esse incidente, avaliando a alegação de
imunidade à luz do direito internacional vigente ou de lei interna que
eventualmente disponha sobre a imunidade dos Estados estrangeiros.
O
processo contra Estado estrangeiro soberano tem a peculiaridade de
dever ser extinto sem julgamento do mérito quando se verificar a
ocorrência de imunidade de jurisdição. O Código de Processo Civil não
dispôs sobre essa hipótese de extinção do processo, o que exige a
construção de regras procedimentais específicas para enfrentá-lo.
A
analogia com outras causas de extinção do processo é o principal método
a ser observado, porém tendo-se presente sempre que o objetivo é
encontrar o processo adequado à aplicação das regras de imunidade. Parte
da jurisprudência tem feito exatamente o contrário, buscando lapidar a
regra material para preservar o processo. Um dos exemplos dessa
constatação é o fundamento que os tribunais buscam para extinguir o
processo quando verificada a imunidade de jurisdição.
No caso Ovídio Alves Marins v. Embaixada da República Popular da Hungria([4]), o
Supremo Tribunal Federal extinguiu o feito nos termos do artigo 267,
VI, do CPC, sem contudo especificar qual das condições da ação
considerava inexistente, se a possibilidade jurídica, a legitimidade das
partes ou o interesse processual. O mais provável é que se estivesse
referindo à impossibilidade jurídica do pedido, haja vista serem
indiscutíveis a legitimidade das partes e o interesse processual do
autor, que reclamava indenizações trabalhistas por demissão sem justa
causa (na época do acórdão o STF ainda aceitava imunidade nessas
causas). Noutro caso, Elias Farah v. Consulado Geral do Líbano([5]),
julgado poucos dias depois, o Supremo foi mais específico e
expressamente dispôs que extinguia o processo por impossibilidade
jurídica do pedido. Em Félix Fischer v. Consulado-Geral da República Popular da Polônia([6]),
o Supremo respaldou decisão de primeira instância que, diante da
imunidade de jurisdição, também extinguia o processo com fundamento no
art. 267, VI, do CPC, “por reconhecer que o pedido é juridicamente
impossível na jurisdição brasileira”.
O fundamento que o Supremo
Tribunal Federal utilizou nesses três casos para justificar a extinção
do processo, quando verificada a imunidade de jurisdição, é claramente
inadequado. O fato de o réu ser imune à jurisdição não significa que o
pedido é juridicamente impossível. Um pedido é juridicamente impossível,
como explicam Cintra, Grinover e Dinamarco, “quando não tem a menor condição de ser apreciado pelo Poder Judiciário, porque já excluído a priori pelo ordenamento jurídico sem qualquer consideração das peculiaridades do caso concreto”([7]).
A impossibilidade jurídica do pedido não permite o prosseguimento da
ação ainda que o réu consinta no exercício da jurisdição, pois a
possibilidade de prestação jurisdicional estaria excluída do ordenamento
jurídico. O exemplo clássico é a ação de divórcio nos países em que o
casamento é indissolúvel. Situação completamente diferente é a ação
contra Estado estrangeiro que, mesmo nas situações em que a análise do
caso concreto indique haver imunidade de jurisdição, a prestação
jurisdicional será ainda possível se houver renúncia à prerrogativa.
Imunidade
de jurisdição do Estado soberano e impossibilidade jurídica do pedido
são dois fundamentos distintos para a extinção do processo sem
julgamento do mérito, embora o primeiro não esteja expressamente
disposto no Código de Processo Civil, ao contrário do segundo, que pode
ser lido no artigo 267, inciso VI. Parece-nos razoável supor que essa
lacuna levou o STF a procurar em um dos fundamentos expressamente
dispostos no CPC a razão para extinguir o processo, ainda que se
colocando à margem do conceito de impossibilidade jurídica do pedido.
Porém,
o reconhecimento da ausência de jurisdição em decorrência da imunidade
do Estado soberano é o bastante para extinguir o processo sem julgamento
do mérito, como fez o ministro Sepúlveda Pertence ao extinguir,
por decisão monocrática, processo em que a República da Coréia, não
respondendo à citação, manifestou-se pela imunidade que, no caso, se
constatava([8]):
“Desse modo, ausente o pressuposto processual de jurisdição, extingo o processo sem julgamento do mérito.”
Ao
determinar a citação, o Estado afirma, ainda que precariamente ou
potencialmente, sua jurisdição sobre a causa. Se configurado o direito à
imunidade soberana, pode o Estado estrangeiro demandado, manifestando
sua prerrogativa, afastar o exercício da jurisdição territorial do
Estado do foro. Lembra Cosnard, com propriedade, que “l’immunité n’en est pas la négation, mais le non-exercice dans une situation particulière”([9]).
Perde-se a jurisdição territorial pelo reconhecimento da imunidade,
como afirmou a Corte de Cassação francesa no julgamento do caso General National Marine Transport Company (g.n.m.t.c.) v. Marseille Frêt, ocorrido em 4 de fevereiro de 1986([10]).
Entretanto,
não se pode negar ao jurisdicionado o direito de instaurar o incidente
de imunidade. A jurisdição para decidir esse incidente e determinar se o
Estado estrangeiro faz jus à imunidade é do Estado do foro. Para tanto,
entendemos ser necessária a citação do Estado, com as peculiaridades
destacadas, e não uma “simples comunicação processual, atípica em
relação às previstas no Código de Processo Civil, visando informar o
ente estrangeiro de que há uma ação ajuizada contra si no âmbito da
jurisdição pátria, convidando-o a dela participar, hipótese em que
deverá renunciar à sua imunidade”, como estabeleceu o STJ.
[1] RO 85/RS, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 04/08/2009, DJe 17/08/2009)
([2]) STF. Ação Cível Originária no 543, julgada em 15/02/2000, Relator: Ministro Sepúlveda Pertence.
([3]) STF. Ação Cível Originária no 575. Relator: Ministro Celso de Mello. Data do despacho: 01/08/2000.
([4]) STF. Apelação Cível no 9.695-5, julgada em 21/05/1987, Relator Ministro Oscar Correa.
([5]) STF. Apelação Cível no 9.704, julgada em 10/06/1987, Relator Ministro Carlos Madeira.
([6]) STF. Apelação Cível no 9.701-3, julgada em 22/10/1987, Relator: Ministro Néri da Silveira.
([7]) CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO. Teoria Geral do Processo. Op. cit., p.217.
([8]) STF. Ação Cível Originária no 543, julgada em 15/02/2000, Relator: Ministro Sepúlveda Pertence.
([9]) COSNARD. Michel. La Soumission des Etats aux Tribunaux Internes…, op. cit., p. 42.
([10]) Apud COSNARD. Michel. La Soumission des Etats aux Tribunaux Internes…, op. cit., p. 42, nota de rodapé no
37: ““ dès que les conditions nécessaires pour le jeu de l’immunité de
juridiction … se trouvent remplies, le juge français perd — sauf
renonciation à ce privilège — son pouvoir de juger.”