Estimativas das mais diversas apontam que cerca de 95% do comércio
internacional são transportados em navios e a maioria desses navios
opera no regime de bandeiras de conveniência.
O termo bandeira de conveniência descreve uma prática de negócios no
mercado da navegação internacional que consiste na inscrição de um navio
mercante em um Estado soberano diferente do Estado dos reais
proprietários ou operadores do navio. Esse país cobra impostos e taxas
mínimos, por vezes nulos, e não tem desejo, nem a capacidade física ou
financeira, de aplicar sua legislação interna ou a internacional,
pertinente a registros de navios, para que um armador arvore sua
bandeira. Na maioria das vezes, não mantém vínculos de qualquer natureza
com estes armadores, senão o objetivo de ganhos financeiros imediatos.
Não existe um regime global que regule ou até desregule o registro de
navios em determinados países, que obrigue ou desobrigue o registro nos
países de que são cidadãos os proprietários dessas embarcações,
instalando-se aí um verdadeiro "salve-se quem puder", valendo qualquer
regra para a manutenção barata de um navio.
Fazendo uma analogia ao caso concreto, podemos comparar com o tempo
em que no Brasil era fato corriqueiro o emplacamento de carros em
Curitiba, pois lá o IPVA era bem menor. Isso mudou, depois da reação
estadual de São Paulo.
A elaboração de uma política marítima é fundamental para um país como o Brasil
Este é o cerne do problema. Se países como Bolívia e Mongólia, que
nem costa possuem, são hoje países de "registro aberto" - esse é o nome
que se dá a esses países, onde a legislação é, digamos, mais frouxa -,
quem regula as condições de trabalho em alto mar dessas tripulações? Não
esquecendo que esses salários aviltantes causam também o chamado
dumping social. Quem verifica os cascos e condições de navegabilidade
desses navios? Quem dá a devida atenção ao fato de o Brasil deixar de
arrecadar impostos ao não ter uma marinha mercante forte, deixando de
criar um mercado de trabalho?
Esses países oferecem subsídios e isenções de impostos e taxas aos
proprietários dos navios, criando uma competição desleal no mercado
global, dando uma imensa vantagem competitiva a esses proprietários.
Para regrar esse comércio não regulado, trazendo igualdade de competição
às marinhas mercantes de todos os participantes do comércio
internacional, faz-se necessário um "poder maior", supranacional.
Com o advento da criação da Organização Mundial do Comércio (OMC),
também sob o manto da ONU, surgiu um novo e poderoso instrumento para a
eliminação de práticas desleais de comércio, mormente, com a
promulgação, em 1995, do General Agreement of Tariffs in Services
(Gats), sob a égide da OMC, que viria a tornar realidade uma maior
transparência e progressiva liberalização do comércio internacional, em
bases mais igualitárias.
Nada mais natural que defender a instituição criada para desfazer a
"ordem natural" citada por Hobbes, no Leviatã, a "lei do mais forte": as
Nações Unidas - e dentro dela a OMC e, dentro da OMC, o órgão criado
para lidar com os assuntos da navegação marítima internacional, o Gats,
e, dentro do Gats, o Grupo de Trabalho de Serviços Marítimos.
Infelizmente, até o momento, a Rodada Uruguai, que culminou com a
criação da OMC, não obteve ainda o sucesso esperado, ao menos no quesito
de incluir e fazer valer os serviços marítimos sob as normas da OMC - e
sob a égide do Gats. Hoje, a Rodada Doha tem timidamente o assunto em
seu escopo de discussões, mas, aparentemente, esse assunto não tem
encontrado países que patrocinem essa ideia com o devido entusiasmo, nem
mesmo o Brasil.
Sustenta-se que todos os países possam usar uma legislação equânime
para que haja não somente igualdade entre os contratantes, mas que,
acima de tudo, haja respeito aos direitos humanos dos trabalhadores
marítimos, segurança marítima e melhor proteção ao meio ambiente.
A omissão do Estado brasileiro e dos seus pares - membros da OMC e
principais prejudicados pela injusta competição internacional, causada
pelas bandeiras de "(in)conveniência", que lançam mão de práticas
desleais, e por vezes ilegais - impede o surgimento de uma marinha
mercante e de uma indústria naval brasileira e, até mesmo, a criação de
um poder marítimo digno da grandeza e das necessidades do Brasil.
Trata-se de tema importante para os interesses estratégicos de longo
prazo do Estado brasileiro. A elaboração de uma política marítima de
estado é fundamental para um país que tem uma das maiores costas e
malhas hidroviárias do mundo e, tradicionalmente, estruturado desde o
seu descobrimento, de "costas para o oceano".
Estranho e revelador o fato de, até hoje, o Brasil não contar com uma
guarda costeira, por exemplo, não explorar os benefícios de um cluster
marítimo (no qual poderiam ser fabricados navios e embarcações), não ter
mantido uma marinha mercante (hoje inexistente), não desenvolver as
hidrovias (60 % da matriz de transportes é rodoviária), não desenvolver a
navegação de cabotagem e não fortalecer a indústria naval, a fim de se
tornar uma referência mundial em produtividade e competitividade
marítima e portuária.
Marcelino André Stein é mestre em direito das relações
econômicas internacionais pela PUC-SP, advogado e sócio do escritório
Duarte Garcia, Caselli Guimarães e Terra Advogados
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