Se
as empresas que utilizaram benefícios fiscais concedidos pelos estados
tiverem de recolher o ICMS não pago em decorrência da última posição do
Supremo Tribunal Federal sobre o tema, o poder público é quem terá de
arcar com os prejuízos. A tese, baseada no artigo 37 da Constituição
Federal, foi defendida em congresso internacional sobre Direito
Tributário organizado neste mês em Belo Horizonte. Segundo a
tributarista Mary Elbe Queiroz, presidente do Instituto
Pernambucano de Estudos Tributários, os contribuintes apenas seguiram
as leis estaduais e não podem ser punidos por isso.
A celeuma que
provoca o clima de acerto de contas começou quando o STF julgou
inconstitucionais, em junho, leis e decretos de 14 estados que concediam
vantagens aos contribuintes no recolhimento do ICMS. Com as medidas,
cada estado tentou atrair ao seu território empresas que pudessem
aumentar a arrecadação e movimentar a economia local. Porém, para o
Supremo, a guerra fiscal viola a Constituição ao não submeter ao
Conselho Nacional de Política Fazendária as normas que reduzem alíquotas
e bases de cálculo ou concedem subvenções a quem recolhe o imposto no
estado. A regra prevista na Lei Complementar 24/1975 e no artigo 155 da
Constituição é que qualquer benefício seja aprovado por unanimidade no
órgão, que reúne representantes dos fiscos estaduais de todo o país.
O
STF julgou inconstitucionais, por unanimidade, 23 normas estaduais. São
Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Paraná, Espírito Santo, Mato
Grosso do Sul e Pará tiveram leis derrubadas. Segundo o presidente do
tribunal, ministro Cezar Peluso, os membros do STF podem agora decidir
liminarmente outros casos que aguardam julgamento sobre o mesmo tema.
De
acordo com o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, caso os
estados resolvam cobrar o ICMS reduzido com as leis de incentivo,
sobraria para as empresas uma dívida de R$ 250 bilhões. O valor
corresponde a 14% da arrecadação total de ICMS no país perdida com
renúncia fiscal, multiplicada pelos últimos cinco anos, segundo
levantamento do instituto. Os setores mais atingidos seriam o
automotivo, eletroeletrônico, agropecuária, máquinas e equipamentos,
papel e celulose, metalurgia e minerais metálicos, aeronáutico,
embarcações, medicamentos, comércio atacadista, transportes e
combustíveis.
Isso significa, segundo a vice-presidente do IBPT, Letícia do Amaral,
a possibilidade de inúmeras ações anulatórias desabarem sobre o
Judiciário. "Ao serem cobradas, as empresas vão argumentar que agiram
conforme as normas vigentes", afirma. "Expressivos negócios foram
estruturados e viabilizados a partir da redução do custo do ICMS, obtido
via benefícios fiscais", acrescenta o advogado Cristiano Lisboa Yazbek, sócio do escritório Amaral & Associados.
"Vige,
no ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da presunção de
constitucionalidade das leis, não se podendo atribuir ao adquirente de
boa-fé a responsabilidade pelo eventual descumprimento da Constituição
Federal pelos Estados e o Distrito Federal", lembra o tributarista Alexandre Nishioka,
do Wald Associados e Advogados. O advogado afirma que, no julgamento do
Recurso Especial 31.714, no dia 3 de maio, o Superior Tribunal de
Justiça manteve o crédito ao contribuinte adquirente de boa-fé.
No caso de incentivos irregulares, o tributarista Igor Mauler Santiago,
do escritório Sacha Calmon — Misabel Derzi Consultores e Advogados,
lembra que a Lei Complementar 24/1975 estabelece duas hipóteses de
sanção. "A exigência, pelo estado de origem, do tributo que
indevidamente dispensara, e a negativa, pelo estado de destino, dos
créditos a ele correspondentes", diz. No entanto, elas não podem ser
aplicadas em conjunto, para não haver dupla cobrança do imposto.
"Recente decisão da ministra Ellen Gracie aponta para a solução correta:
a cobrança da diferença no origem e a manutenção dos créditos no
destino."
Em junho do ano passado, a ministra Ellen Gracie
(aposentada) concedeu liminar à Brasil Foods, suspendendo a
exigibilidade de cobranças de ICMS feitas pelo estado de Minas Gerais. O
fisco mineiro havia glosado créditos do imposto adquiridos graças a um
benefício concedido por Goiás. No entanto, para a ministra, "não se
compensam as inconstitucionalidades", disse, citando voto do ministro
Sepúlveda Pertence em 2003, ao julgar a Ação Direta de
Inconstitucionalidade 2.377. "O propósito de retaliar preceito de outro
estado, inquinado da mesma balda, não valida a retaliação:
inconstitucionalidades não se compensam", afirmou o ministro, hoje
aposentado.
Segundo Mary Elbe, Minas Gerais e São Paulo já
começaram a cobrar as empresas beneficiadas, por meio de autos de
infração, inclusive com repercussões penais. "Mas há crime cometido por
quem cumpriu a lei ainda não declarada inconstitucional? Seguir a lei
não é fraude tributária", defendeu a tributarista no auditório da
Faculdade Milton Campos, onde a Associação Brasileira de Direito
Tributário organizou sua 15ª edição do Congresso Internacional de Direito Tributário,
que contou com a participação de ministros do STF e do Superior
Tribunal de Justiça, além de advogados, procuradores e professores.
"Não
é possível que não haja modulação dos efeitos da decisão do Supremo. Se
a lei não pode retroagir, por que uma decisão poderia?", perguntou a
palestrante. De acordo com ela, as administrações tributárias que
concederam os benefícios é que devem responder por eventuais prejuízos. A
teoria, que prevê a responsabilidade objetiva do Estado por dano
tributário, tem como raiz o parágrafo 6º do artigo 37 da Constituição
Federal. "As pessoas jurídicas de direito público e as de direito
privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que
seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o
direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa",
diz o dispositivo.
Mas para o procurador estadual de Minas Gerais Onofre Batista,
que também palestrou no evento, as indústrias não são inocentes no
processo de concessão de benefícios. "Há pressão dos contribuintes para
que o estado edite as regras", afirma. Segundo ele, o argumento de que
as empresas apenas "seguiram a lei" é "interpretação jurídica fora do
contexto do jogo de valores". "Um distribuidor médio que trabalha com
quatro mil produtos diferentes merece ter o benefício da confiança, mas
grandes conglomerados que operam com pouca variedade fazem lobby e
pressionam pelas subvenções", afirma.