Por mais de duas décadas, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi
conhecido como a Corte de José Carlos Moreira Alves. Aposentado desde
2003, o jurista constatou que o STF se tornou outro tribunal. Está mais
político do que em seu tempo, mudou orientações em relação a outros
Poderes, como o Congresso, passou a dar sentenças em que acrescenta
regras para o cumprimento de suas decisões e, para completar, se
informatizou, fazendo com que os ministros tomem decisões através de
senhas eletrônicas.
"Hoje, o STF está adotando uma posição mais política do que
antigamente", afirmou Moreira Alves, numa rara entrevista. Em mais de 27
anos no Supremo, Alves defendeu muitas teses fortes. Uma delas era
justamente a de que o juiz não deve falar com a imprensa; apenas nos
autos dos processos. Aos 78 anos, ele quebrou essa regra por 20 minutos
ao aceitar conversar com o Valor, no dia 11 de agosto,
após receber o título de doutor "honoris causa" da Escola de Direito de
Brasília (EDB) das mãos do ministro Gilmar Mendes.
Outra tese que foi fielmente seguida pelo STF de Moreira Alves era a
de a Corte não criar ou indicar normas, caso o Congresso demore para
aprovar leis. O tribunal simplesmente ultrapassou o semáforo dessa
regra, em 2007, quando decidiu que, na falta de aprovação pelo Congresso
de uma lei sobre a paralisação do trabalho pelos servidores públicos,
eles teriam de seguir a lei de greve do setor privado. No início deste
ano, nova ultrapassagem quando o STF decidiu que, sem lei para o aviso
prévio, a própria Corte vai definir critérios para fixar um novo prazo
para o benefício que será superior aos 30 dias atuais.
O Supremo tornou-se ativista? "Esse é o tal problema", responde
Moreira Alves. "Ao se elaborar uma lei ou ao se indicar quando ela será
aplicada, se conduz a um poder político de dizer: a normatividade é
essa."
Alves explicou que, antes, ao receber pedidos judiciais para que o
Congresso aprove uma lei, o STF apenas fazia uma comunicação aos
parlamentares de que eles estavam demorando para garantir um direito à
população. Esses pedidos são chamados formalmente de mandados de
injunção. "Eu sempre disse que o mandado de injunção é um instituto que,
na realidade, não tinha possibilidade de criar normas, mas era apenas
um alerta que se dava ao Congresso Nacional para que ele criasse as
normas", disse Alves.
"No meu tempo não havia isso (ativismo judicial); mas vão dizer que estou velho e não compreendo os temas novos"
Hoje, os mandados de injunção ganharam uma nova força, pois há sempre
o risco de que, ao julgá-los, a Corte pós-Moreira Alves indique uma
nova lei a ser aplicada ou fixe novas regras que não foram aprovadas
pelo Parlamento. "É a própria Constituição que declara que, na ação de
constitucionalidade por omissão [dos parlamentares], se faça comunicação
ao Congresso. Mas não diz lá que se faça norma para substitui-lo ou
para atuar no mundo da lei."
Outro tipo de decisão, que não existia na época de Moreira Alves é a
sentença aditiva - quando o tribunal acrescenta regras à lei para que
uma decisão seja cumprida. Isso aconteceu em pelo menos dois grandes
casos recentes: no julgamento que autorizou pesquisas com células
tronco, pois o tribunal criou um novo estatuto para a realização dessas
pesquisas, e na demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, quando os
ministros fixaram novas condições para que a terra fosse devolvida para
os índios.
"No meu tempo, não havia isso", pontuou Alves. "Vão dizer: o homem está velho e não tem compreensão dos temas novos", continuou.
Sobre o novo papel do STF, disse que "é um papel irreversível". "Essa
orientação, hoje, é amplamente predominante. A diretriz dada pelo
tribunal é exatamente a de suprir as lacunas [de leis] sejam elas totais
ou parciais."
O STF está, hoje, mais preocupado em resolver grandes questões do
país e, por isso, passou a indicar qual é o direito a ser aplicado mesmo
na falta de leis? "O problema aí é saber justamente se a Constituição
outorga esse poder ou se ele foi criado pelo tribunal", constatou Alves.
"Se foi criado pelo tribunal, é uma tendência. E sendo uma tendência da
grande maioria, ela deve ser seguida, até porque há uma modificação na
orientação da Corte."
Alves não se sentiu confortável ao falar dessa nova orientação do
STF. Para ele, não há novidade no fato de que, ao decidir, o tribunal
cria um novo direito. "Toda a decisão judicial não deixa de ser no fundo
a criação de um direito", disse. Segundo ele, o que há de diferente é a
intensidade dessa criação, pois o STF está criando direito novo em
vários temas.
"Mas, a minha formação não foi essa. Ela foi mais jurídica e, por
isso, sempre procurei dar às minhas decisões um fundamento jurídico.
Agora, evidentemente, com a mudança de orientação é difícil a gente
estar fora do tribunal e dizer se deve criticar ou não. Confesso que não
gosto de falar sobre novos colegas ou de novas orientações até porque
parece que temos um saudosismo penitente ou, então, nos tornamos um
progressista que só se tornou progressista quando deixou o tribunal."
Para o ex-ministro, o grande desafio do STF é ficar num terreno que
seja razoável, e não começar a criar normas absolutamente novas em
matéria de direito. Ele reconheceu que essa tarefa é difícil, ainda mais
diante de questões muito populares, como união homoafetiva e cotas
raciais em universidades.
"São questões constitucionais. No problema da união estável, a
Constituição diz que é do homem com a mulher. Portanto, é preciso saber
se é só essa [união] ou se há outras. O mesmo ocorre com as cotas: é
preciso saber se é possível se afastar o princípio do mérito tendo em
vista o problema das cotas raciais e até mesmo sociais. É um problema
realmente delicado, pois daqui a pouco vai haver até para os brancos e
para os não inteligentes."
Alves foi sucedido no STF pelo ministro Joaquim Barbosa, relator do
mensalão. "Tivemos um só caso parecido com esse, que foi o caso Collor",
lembrou. "Eram 140 volumes. Impossível de se ler tudo." O ex-presidente
Fernando Collor foi absolvido pelo STF e, hoje, é senador. O
ex-ministro disse que o caso do mensalão pode trazer novamente para a
Corte "o problema de se decidir sobre aquilo que foi lido por
terceiros". Hoje, o processo está com 44 mil folhas divididas em 210
volumes e 484 apensos.
Alves recordou-se que, durante uma discussão sobre a necessidade de o
Senado aprovar algumas orientações dadas pelo STF, ele defendeu que o
tribunal não poderia emitir meras opiniões ao Parlamento. "Sustentei
ideias que eram difíceis naquele momento e ainda disseram que eu era
conservador." Na ocasião, ele disse que o STF se tornaria um "órgão
lítero-poético-recreativo", pois apenas faria manifestação para, depois,
o Senado decidir. "Aquele passo foi importantíssimo", disse Gilmar
Mendes, que utilizou a mesma expressão durante o julgamento do italiano
Cesare Battisti para criticar a decisão em que o tribunal permitiu que o
presidente da República desse a palavra final em casos de extradição.
"Aquele episódio envolvendo o Senado deu força para a Adin", completou
Mendes, referindo-se à ação direita de inconstitucionalidade pela qual o
STF pode derrubar leis aprovadas pelo Parlamento.
Para Moreira Alves, o STF está passando por "modificações rápidas
demais". Mas, as suas memórias da Corte continuam muito boas. "Afasto
qualquer ideia que não seja agradável das demais. Fui ministro por 27
anos e dez meses, sem ter nenhum apoio político de qualquer órgão ou
pessoa."
Alves foi nomeado pelo presidente Ernesto Geisel para o STF, em 1975,
e guarda até hoje a frase que ouviu ao ser indicado. "O presidente
disse que fui nomeado tão moço que o tribunal ficaria cansado de mim."
Oito anos depois de sua aposentadoria, o ministro enxerga o STF como "uma Corte abastada da realidade política".