Os
contribuintes querem justiça tributária. Isso implica em muitas coisas,
aqui já descritas: carga tributária que não nos transforme em escravos,
burocracia em seu limite mínimo e uma razoável segurança jurídica, com
regras estáveis.
Tudo isso não é muita coisa, pois que se trata
apenas de dar cumprimento às normas constitucionais em vigor. Ao que
parece as autoridades fazendárias preferem ler a portaria, a resolução, a
instrução normativa, ou qualquer desses atos que diariamente o
burocrata de plantão cria sem saber direito para quê, mas que sempre
servem para viabilizar uma multa ou quem sabe algum tipo de solução onde
a dificuldade que se criou possa ser vendida como uma facilidade de bom
preço.
E quando alguém reclama de ter de ir à repartição para
tentar corrigir asneira feita pelo fisco, anuncia-se que agora as
repartições atendem com hora marcada, mediante senhas previamente
agendadas e em ambientes confortáveis. Mas tudo isso é besteira.
Pouco
adianta uma senha emitida eletronicamente, cadeiras onde se pode
esperar sentado assistindo alguma coisa na televisão ou mesmo água e
café à disposição. O contribuinte não procura a repartição para tomar
água e café ou ver televisão. O que ele quer é solução para seu
problema, principalmente quando o problema foi criado pela idiotice
fazendária. Repartição fiscal não é parque de diversões mas não precisa
ser o vestíbulo do inferno.
Recentemente, um assalariado,
executivo de uma grande empresa, que viaja a trabalho com muita
frequência, foi surpreendido com uma notificação onde praticamente todas
as suas deduções foram desconsideradas, com o que a restituição que lhe
deveria ter sido paga há dois anos foi cancelada e exigido o
recolhimento de quase um terço de todos os seus rendimentos.
Surpreso,
dirigiu-se à repartição , lá sendo informado que lhe fora enviado pelo
correio um pedido de explicações sobre as deduções e como ele não
compareceu para fornecer as provas das deduções, todas elas foram
desconsideradas.
Dentre as tais deduções, havia a pensão
alimentícia que o empregador há vários anos retem por ordem judicial e
deposita na conta da ex-mulher do executivo. Saliente-se que o
empregador é empresa conhecidíssima em todo o país, uma das maiores do
seu ramo. Bastaria que o servidor consultasse pelo tal “sistema” os
registros da empresa e constaria a legitimidade da retenção.
O
contribuinte tentou explicar ao servidor que não recebera a intimação
anterior, que se alega enviada pelo correio, pois estava viajando a
trabalho. Ouviu incrédulo que sempre que viaja o contribuinte deve
deixar alguém encarregado de receber a correspondência do fisco!
Eis
aí, finalmente, a prisão domiciliar do contribuinte, que não pode
viajar nem a trabalho, pois corre o risco de receber intimação! Isso é
tão ridículo que não merece comentários. Ao rejeitar praticamente todas
as deduções, o fisco está mentindo, pois bastaria consultar os
exercícios anteriores do contribuinte e as informações prestadas pela
fonte pagadora para constatar a veracidade do que foi declarado.
Há
de prevalecer no caso o princípio da verdade material. O Decreto 1.171
de 22/06/1994 que trata do Código de Ética Profissional do Servidor
Público Civil do Poder Executivo Federal, ordena que:
“VIII -
Toda pessoa tem direito à verdade. O servidor não pode omiti-la ou
falseá-la, ainda que contrária aos interesses da própria pessoa
interessada ou da Administração Pública. Nenhum Estado pode crescer ou
estabilizar-se sobre o poder corruptivo do hábito do erro, da opressão
ou da mentira, que sempre aniquilam até mesmo a dignidade humana quanto
mais a de uma Nação.”
Por outro lado, a Constituição Federal, em seu artigo 37, ordena:
“Art.
37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá
aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência...”
Outrossim, se toda pessoa tem direito à verdade e o servidor não pode omiti-la ou falseá-la,
é inadmissível que despesas dedutíveis sejam “glosadas” apenas ante a
alegação de intimação não atendida. O contribuinte não tem a obrigação
de permanecer à disposição do fisco no aguardo de eventual intimação.
Deve atendê-la, sim, mas dentro dos limites do razoável. Acima dessas
formalidades estão os princípios constitucionais já citados.
Não
cabe ao contribuinte provar que não sonegou. Cabe ao Fisco provar a
suposta sonegação ou dedução indevida. A prova não será a falta do
contribuinte ao dia e hora marcados para sua presença na repartição.
Deve o fisco diligenciar para apurar a verdade. E atualmente isso é
facílimo, bastando o uso da informática. Cabe ao fisco provar, não ao
contribuinte.
Nesse sentido é a doutrina. HUGO DE BRITO MACHADO,
referência mundial em Direito Tributário, publicou inúmeros livros,
dentre os quais “Mandado de Segurança em Matéria Tributária” (Ed.
Dialética, S.Paulo, 2003) em cuja página 272 dá-nos preciosa lição:
“O
desconhecimento da teoria da prova, ou a ideologia autoritária, tem
levado alguns a afirmarem que no processo administrativo fiscal o ônus
da prova é do contribuinte. Isso não é, nem poderia ser correto em um
estado de Direito democrático. O ônus da prova no processo
administrativo fiscal é regulado pelos princípios fundamentais da teoria
da prova, expressos, aliás, pelo Código de Processo Civil, cujas normas
são aplicáveis ao processo administrativo fiscal. No processo
administrativo fiscal para apuração e exigência do crédito tributário,
ou procedimento administrativo de lançamento tributário, autor é o Fisco. A ele, portanto, incumbe o ônus de provar a ocorrência do fato gerador.” (Grifo da recorrente).
Não
parece razoável um procedimento fiscal onde se possa afastar todas as
deduções ou abatimentos, simplesmente porque em determinado dia o
contribuinte não compareceu para dar explicações. O contribuinte não é
empregado ou escravo do fiscal. Este deve, pelo menos, atender a
explicação e aplicar o princípio da justiça tributária ao caso concreto.
Lançar o tributo mesmo sabendo que a dedução é correta, é crime de
excesso de exação. O fisco não precisa e nem pode cometer cometer
crimes.
Raul Haidar é
advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e disciplina
da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.