O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ),
tribunais superiores, vêm firmando o entendimento de que as demais
Cortes e juízes singulares são obrigados a julgar no mesmo sentido que
eles. Esse entendimento tenta dar resposta a um justo clamor da
comunidade jurídica (magistrados inclusive), no sentido de que haja
maior uniformidade e previsibilidade nas decisões. No entanto, a
fundamentação utilizada para embasar esse vasto alcance das decisões dos
tribunais superiores, esse efeito vinculante, parece padecer de
fragilidades jurídicas e políticas que merecem exame.
Primeiramente, é importante ter claro o que estabelece a Constituição
de 1988. O texto, após várias emendas, continua a afirmar que apenas
algumas decisões do STF, e nenhuma do STJ, terão efeito vinculante.
Olhando mais atentamente o que diz o texto sobre o STF, especificamente
quanto ao recurso que mais gera processos naquele tribunal, chamado
recurso extraordinário, lê-se que as decisões tomadas pelo Supremo
nesses recursos só terão efeito vinculante se esse for o desejo do
Senado, manifestado por resolução.
Ocorre que o STF vem entendendo que suas decisões em recurso
extraordinário têm efeito vinculante em, praticamente, todos os casos,
independente de manifestação do Senado. A justificativa para não levar
em conta a regra de que cabe ao Senado dar ou não efeito vinculante a
essas decisões é de que teria havido uma "mutação constitucional", que
ocorre quando uma sociedade muda tanto, desde que o texto constitucional
foi editado, que alguns de seus artigos devem agora ser lidos num
sentido diferente daquele que fora pensado por quem o escreveu. Esse
instituto é utilizado no exterior como última saída para adaptar à
realidade atual constituições antigas, que foram pouco ou só
superficialmente emendadas.
Decisões do Supremo em RE só terão efeito vinculante se esse for o desejo do Senado
Nosso contexto é outro. A Constituição brasileira é de 1988, mais
jovem que o brasileiro médio (IBGE - Censo 2010). Também é altamente
mutável, tendo sido emendada 72 vezes desde sua edição, mais de três
alterações por ano. Além disso, e sobretudo, deve-se perceber que a
"mutação" é utilizada para dar a um texto antigo um significado novo,
não pensado por seus autores, mas que seja razoavelmente possível de ser
extraído do artigo como ele foi escrito. A mutação, portanto, é um
método de se entender um artigo de forma diferente, mas não de
revogá-lo, que é basicamente o que se quer fazer com a regra que exige
resolução do Senado para dar efeito vinculante a decisões do STF em
recurso extraordinário.
Um estudioso estrangeiro, confrontado com nosso cenário
constitucional, diria educadamente que a chance de ter havido de fato
alguma "mutação" na constituição brasileira é muito remota. Se
insistíssemos na pergunta, e também falássemos de nosso intuito de
utilizar a "mutação" para revogar uma regra do texto, ele tentaria mudar
de assunto. Depois, se disséssemos que a regra que queremos revogar diz
respeito à separação dos poderes, ele se lembraria de algum compromisso
para aquele momento.
Realmente, a coisa se torna mais intrincada quando analisada pelo
prisma da separação dos poderes. O STF tem externado que suas decisões
em recurso extraordinário, mesmo sem manifestação do Senado, vincularão
não só os demais tribunais e juízes, como também o Executivo e o
Legislativo. Isso cria nos demais poderes a impressão de que o
Judiciário pode estar se outorgando mais poder. Essa impressão se
reforça quando se examina o caso do STJ. Embora suas decisões não
cheguem a vincular os demais poderes, o fato é que o imenso alcance
prático que as decisões do STJ vêm ganhando no mundo jurídico parece não
ter sido previsto pela Assembleia Constituinte nem para o STF. Fica a
aparência, então, de o Judiciário estar aumentando sua força sem a
participação dos demais poderes, o que parece ir contra o princípio de
freios e contrapesos que rege a relação entre eles.
O grau de liberdade que tem sido utilizado para construir o
entendimento de efeito vinculante de todas as decisões dos tribunais
superiores parece ser o mesmo grau de liberdade que a comunidade
jurídica, em polêmicas recentes envolvendo decisões judiciais, chamou de
ativismo. Isso leva a crer na possibilidade de que essa mesma
comunidade, quando no futuro se sentir desagradada por decisões dos
tribunais superiores e clamar pela autonomia dos demais juízes e
tribunais, apontará as graves fragilidades do entendimento aqui
retratado, que agora está optando por não ver. Se isso vier a ocorrer, o
Legislativo e o Executivo poderão aproveitar a oportunidade para
retomar o terreno perdido. Assim, apesar de servir a uma finalidade
nobre, é bem provável que o entendimento de expansão dos efeitos
vinculantes das Cortes superiores poderá ser rapidamente desacreditado
por quem hoje o apoia, o que deixará o Judiciário encurralado pela
comunidade jurídica, pelo Executivo e pelo Legislativo.
De qualquer modo, o fato é que, no jogo dos três poderes, o Judiciário segue na ofensiva.
Hugo Otávio T. Vilela
26/07/2011
Hugo Otávio T. Vilela é juiz federal da 1ª Região, membro da
Turma Recursal Suplementar dos Juizados Especiais Federais (GO),
integrante do Fórum Nacional de Saúde - CNJ, mestre em direito
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