A decisão extraterritorial sem acordo de cooperaçãoQuestiona-se
se a autoridade judiciária brasileira, sem recorrer à cooperação
jurídica internacional, pode determinar a pessoas ou empresas,
localizadas no território nacional, que façam ou se abstenham de fazer
algo em território estrangeiro. A realização de quaisquer outras
diligências processuais ou a execução de decisões judiciais depende de
cooperação do respectivo Estado estrangeiro, por respeito à soberania e
aos princípios correlatos, tais como independência nacional,
não-intervenção, igualdade entre os Estados, defesa da paz, solução
pacífica dos conflitos e cooperação entre os povos. Os princípios
de soberania, independência, não-intervenção e cooperação entre os
povos, expressamente albergados na Constituição Federal, ao mesmo tempo
em que não permitem aos Estados estrangeiros realizarem diligências
processuais ou executarem decisões judiciais em território nacional à
margem dos mecanismos apropriados de cooperação jurídica internacional,
impedem, fora destes mecanismos, a excursão do poder jurisdicional
brasileiro para alcançar bens e pessoas em território estrangeiro. Neste
sentido, é ilustrativo o seguinte trecho de recente acórdão da Corte
Especial do Superior Tribunal de Justiça, relatado pelo ministro Teori
Zavascki:
“As relações entre Estados soberanos que têm por objeto a execução de
sentenças estrangeiras e de cartas rogatórias representam, portanto, uma
classe peculiar de relações internacionais, que se estabelecem em razão
da atividade dos respectivos órgãos judiciários e decorrem do princípio
da territorialidade da jurisdição, inerente ao princípio da soberania,
segundo o qual a autoridade dos juízes (e, portanto, das suas decisões)
não pode extrapolar os limites territoriais do seu próprio país …”
(Rcl 2.645/SP, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, CORTE ESPECIAL, julgado em 18/11/2009, DJe 16/12/2009) O
Supremo Tribunal Federal, em vários precedentes, rejeitou atos e
diligências processuais provenientes de Estados estrangeiros que
pretendiam ter eficácia no território nacional fora dos instrumentos
próprios de cooperação jurídica internacional. O ministro Rodrigo
Alckmin, em voto proferido na SE 2.114-EUA, ressaltou ser “incompatível
com a soberania brasileira o fato de praticar-se ato processual
estrangeiro dentro do território nacional, com dispensa da rogatória”: “Ora,
no caso, a dispensa de citação das rés, por meio de rogatória (quer por
tê-las como representadas por autoridade estrangeira, quer pela prática
de ato processual, por via postal, no Brasil), não deve ser admitida.
Entendo incompatível com a soberania brasileira o fato de praticar-se
ato processual estrangeiro (complementar à citação que seja), dentro do
território nacional, com dispensa de rogatória”.
(SE 2.114, Relator(a): min. BILAC PINTO, TRIBUNAL PLENO, julgado em
04/04/1974, DJ 23-05-1975 PP-03507 EMENT VOL-00986-01 PP-00114 RTJ
VOL-00087-** PP-00384 ,) No julgamento da SE 2.671, o STF, na mesma linha, expressamente não admitiu que “funcionário estrangeiro pratique diligência processual em seu país e que tal diligência tenha eficácia em nossa jurisdição”, conforme o voto do ministro Antonio Neder:
“Não é admissível, no Brasil, que funcionário estrangeiro pratique
diligência processual em seu país e que tal diligência tenha efeito em
nossa jurisdição, notadamente quando executada mediante ofensa da nossa
ordem pública e da soberania nacional.”
(SE 2.671 AgR, Relator(a): Min. ANTONIO NEDER, TRIBUNAL PLENO, julgado
em 04/06/1980, DJ 01-07-1980 PP-04943 EMENT VOL-01177-01 PP-00067 RTJ
VOL-00095-03 PP-01017) Portanto, pode se concluir, à luz dos precedentes acima, que a autoridade dos juízes e de suas decisões não pode extrapolar os limites territoriais do seu próprio país (STJ, Rcl 2.645/SP, Rel. ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, CORTE ESPECIAL, julgado em 18/11/2009, DJe 16/12/2009), porque incompatível com a soberania o fato de praticar-se ato processual estrangeiro dentro do território nacional
(STF, SE 2.114, Relator(a): Min. BILAC PINTO, TRIBUNAL PLENO, julgado
em 04/04/1974, DJ 23-05-1975 PP-03507 EMENT VOL-00986-01 PP-00114 RTJ
VOL-00087-** PP-00384), não sendo admissível que funcionário
pratique diligência processual em seu país e que tal diligência tenha
efeito em jurisdição estrangeira (STF, SE 2.671 AgR, Relator(a):
Min. ANTONIO NEDER, TRIBUNAL PLENO, julgado em 04/06/1980, DJ 01-07-1980
PP-04943 EMENT VOL-01177-01 PP-00067 RTJ VOL-00095-03 PP-01017). O
fato de ter jurisdição sobre pessoas ou fatos sediados no território
nacional não autoriza a autoridade judiciária local a determinar, sem
recurso à cooperação jurídica internacional, medidas com efeitos
processuais em território estrangeiro. Tampouco pode a autoridade
judiciária local, sem agredir os princípios da soberania e da cooperação
entre os povos, impor o poder de coerção sobre pessoas que se encontram
em seu território para dispor sobre bens e pessoas que se encontram em
Estado estrangeiro. Alcançar bens e pessoas em território
estrangeiro por meio de soluções unilaterais, à margem dos meios de
cooperação jurídica internacional, privilegia a força em detrimento do
direito, a extraterritorialidade em detrimento da cooperação, o império
em detrimento da convivência harmônica entre soberanias. Ao se
admitir como válido o raciocínio de que a autoridade judiciária
brasileira pode determinar comportamentos em jurisdições estrangeiras,
teríamos que considerar como igualmente constitucionais e válidas no
Brasil (não contrárias à soberania e aos princípios correlatos) ordens
judiciais estrangeiras que, por jurisdição pessoal, dispusessem sobre
pessoas ou bens no território nacional. Medidas extraterritoriais
unilaterais têm sido utilizadas especialmente pelos Estados Unidos, não
sem crítica e resistência da comunidade internacional, que as considera
violadoras do direito internacional e da soberania e independência dos
demais Estados soberanos. Em 1992, em decisão no caso United States v. Humberto Alvarez Machain,
a Suprema Corte dos Estados Unidos estabeleceu que o Judiciário norte
americano é competente para processar criminalmente cidadão estrangeiro
abduzido à força de território mexicano por oficiais norte-americanos,
sem autorização das autoridades mexicanas[1]. No caso United States v. Bank of Nova Scotia[2],
a Suprema Corte dos Estados Unidos admitiu que o banco Nova Scotia, em
Miami, Florida, fosse obrigado a produzir dados bancários existentes em
sua filial das Bahamas, a despeito da lei bahamenha de proteção ao
sigilo bancário e da inexistência de cooperação jurídica internacional: “O
procedimento de assistência judiciária não empresta a devida deferência
aos interesses dos Estados Unidos. Em essência, o banco pede ao
tribunal para exigir que o nosso governo peça aos tribunais das Bahamas
para ser autorizado a fazer algo lícito, sob leis dos Estados Unidos.
Conclui-se que tal procedimento é contrário aos interesses da nossa
nação e se sobrepõem aos interesses das Bahamas.” A partir do caso Nova Scotia, os Estados Unidos passaram a utilizar as chamadas “intimações Nova Scotia” (Nova Scotia Subpoenas)
para, unilateralmente, obter provas no exterior a partir da jurisdição
sobre pessoas localizadas nos território norte-americano. David Gerber, professor associado da Faculdade de Direito Chigago-Kent, em artigo publicado no American Journal of Comparative Law, assim se refere às iniciativas extraterritoriais de produção de prova no interesse do processo judicial norte-americano[3]: “Operando
com base nos conceitos nacionais de justiça, os tribunais americanos se
consideram autorizados a aplicar extraterritorialmente as regras
americanas de produção de prova (por exemplo, para determinar conduta
fora dos Estados Unidos). Em resposta, governos estrangeiros procuram
proteger seus próprios interesses e conceitos de justiça, tentando
impedir ou limitar tais aplicações. As medidas tomadas incluem a pressão
diplomática sobre o governo dos Estados Unidos, a participação no
contencioso dos EUA, e, em alguns casos, a edição das chamadas
"legislação de bloqueio.” David Small, ex-consultor jurídico adjunto do Departamento de Estado dos Estados Unidos, ressalta[4] que “enquanto os
Estados Unidos não estão sós no estabelecimento de jurisdição
extraterritorial, eles são a mais profílica fonte de leis, regulamentos e
decisões extraterritoriais”. E, continua, “[os Estados Unidos] são o mais relevante alvo de reclamação internacional sobre extraterritorialidade”. Segundo Small, “na
ausência de canais viáveis de cooperação, os Estados Unidos se reservam
no direito de tomar medidas unilaterais, tais como as ordens para que
pessoas sujeitas à jurisdição ‘in personam’ das cortes americanas
produzam provas onde quer que estejam localizadas.” Conclui seu artigo com a seguinte advertência:
“… aqueles preocupados com extraterritorialidade devem permanecer
vigilantes. Há a certeza de haver escaramuças e batalhas pela frente.” O
próprio Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ) reconhece que
atos unilaterais com efeitos extraterritoriais são controversos e
criticados por outros países. Assim, o DOJ determina a seus procuradores
a obtenção de autorização interna prévia para a utilização das
intimações “Nova Scotia”[5]:
“Como o uso de medidas unilaterais compulsórias pode afetar
negativamente a relação com autoridades estrangeiras, todos os
procuradores federais devem obter autorização escrita por meio do OIA
(Gabinete de Assuntos Internacionais) antes de emitir quaisquer
intimações a pessoas ou entidades nos Estados Unidos para provas
localizadas no exterior.” A Constituição e as leis brasileiras, na
linha dos precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior
Tribunal de Justiça que as interpretam, conforme acima visto, não
admitem que as autoridades brasileiras emulem seus congêneres
norte-americanos na tentativa de estabelecer, à margem da cooperação
jurídica internacional, mecanismos unilaterais e extraterritoriais para
conferir eficácia às suas decisões, ainda que disfarçados de exercício
da jurisdição pessoal. Observando o mandamento constitucional de
que a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações
internacionais pelos princípios da independência nacional,
não-intervenção, igualdade entre os Estados, defesa da paz, solução
pacífica dos conflitos e cooperação entre os povos, temos firmado
tratados bilaterais e multilaterais de cooperação jurídica
internacional, inclusive com os Estados Unidos, a exemplo do Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal, ratificado no Brasil pelo Decreto 3.810, de 2 de maio de 2001. No
mesmo sentido, a Constituição, o Código de Processo Penal e a
legislação extravagante estabelecem mecanismos de cooperação jurídica
internacional, como as cartas rogatórias, as homologações de sentença
estrangeira, as extradições e outros. Admitir-se, portanto, como
válida uma “solução” unilateral da autoridade judiciária brasileira é
fazer coro às interpretações que admitem a ampliação da
extraterritorialidade judicial e permanecer surdo às críticas que
advogam o fortalecimento da cooperação jurídica internacional. É
admitir, por reciprocidade, que Estados estrangeiros possam dispor sobre
pessoas e bens localizados no território nacional. Significa não poder
reclamar se, amanhã, os Estados Unidos, por exemplo, utilizarem
idênticos artifícios para impor suas decisões a pessoas ou bens
localizados no Brasil.
[1] United States v. Humberto Alvarez Machain, 504 U.S. 91 (1992) [2] United States v. The Bank of Nova Scotia, 462 US 1119 (1983). Tradução livre. No original: “The
judicial assistance procedure does not afford due deference to the
United States’ interests. In essence, the bank asks the court to require
our government to ask the courts of the Bahamas to be allowed to do
something lawful under United States law. We conclude such a procedure
to be contrary to the interests of our nation and outweigh the interests
of the Bahamas.” [3] GERBER, David. “Extraterritorial Discovery and the Conflict of Procedural Systems: Germany and the United States”. In American Journal of Comparative Law, vol. 34, 1986, p. 745. Tradução livre. No orginal: “Operating
on the basis of domestic concepts of justice, American courts consider
themselves justified in applying American discovery rules
extraterritorially (i.e., to require conduct outside the United States).
In response, foreign governments seek to protect their own interests
and concepts of justice by attempting to prevent or limit such
applications. The measures taken have included diplomatic pressure on
the United States government, participation in U.S. litigation, and, in
some cases, the passage of so-called ‘blocking legislation’ ” [4] Small, David H. “Managing Extraterritorial Jurisdictional Problems: The United States Government Approach”, in 50 Law & Contemporary Problems 289 (1987), p. 284, 289 e 302. Tradução livre. No original: [284] “While
the United States is not alone in asserting extraterritorial
jurisdiction, it is the most prolific source of extraterritorial law,
regulation, and enforcement action. Not surprisingly, it is the most
significant target of international complaint about extraterritoriality.” [289] “Absent
viable cooperative channels, they reserve the right to take unilateral
measures, such as demands that persons subject to the in personam
jurisdiction of U.S. courts provide evidence from wherever located.” [302] “…those concerned with extraterritoriality must remain vigilant. There are sure to be skirmishes and battles ahead.” [5] Criminal Resources Manual – 279 Subpoenas. Tradução livre. No original: "Since
the use of unilateral compulsory measures can adversely affect the Law
enforcement relationship with the foreign country, all federal
prosecutors must obtain written approval though OIA (Office of
International Affairs) before issuing any subpoenas to persons or
entities in the United States for records located abroad”
http://www.conjur.com.br/2011-jul-06/decisao-extraterritorial-nao-cumprida-acordo-cooperacao
06/07/2011 |