Pressão internacional é arma pela quebra de sigiloEnquanto
a batalha pelo acesso à movimentação bancária dos contribuintes pelo
fisco sem autorização da Justiça espera uma decisão definitiva, a
Receita Federal se arma para reverter a atual posição do Supremo no
último round. A estratégia é convencer os ministros de que o Brasil
andaria para trás se a Justiça tivesse de ser consultada a cada
fiscalização. O principal argumento são os esforços da OCDE (Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) para aumentar a
transparência de informações fiscais a fim de combater o crime. Nestas
terça e quarta-feiras (31/5 e 1º/6), o tema foi debatido em um fórum
mundial organizado pela entidade internacional nas ilhas Bermudas, com a
presença de representantes do Brasil. No ano passado, o Supremo
mostrou não ter chegado a um consenso sobre o assunto. Primeiro, ao
julgar um caso concreto no Recurso Extraordinário 389.808, por seis
votos a quatro, a corte entendeu que não existe quebra de sigilo
bancário na solicitação às instituições financeiras de informações sobre
movimentações de clientes. O entendimento, que cassou liminar dada pelo
ministro Marco Aurélio, foi de que não há quebra, mas transferência de
dados de uma entidade com dever de sigilo — no caso, os bancos — para
outra com a mesma responsabilidade — o fisco. Em seguida, no julgamento
de mérito da matéria, uma mudança de voto do ministro Gilmar Mendes e a
ausência do ministro Joaquim Barbosa levaram o caso para decisão oposta:
o fisco não tem autoridade para quebrar o sigilo bancário do
contribuinte sem interferência do Judiciário, com base no que diz o
artigo 5º da Constituição, em seu inciso XII. A decisão se deu por cinco
votos a quatro. O arremate fatalmente virá de uma das seis Ações
Diretas de Inconstitucionalidade que aguardam julgamento, ou do Recurso
Extraordinário 601.314, ajuizado contra a União, e que já teve
repercussão geral reconhecida. Ao contrário das duas ações julgadas em
2010, as próximas da pauta ou têm efeito erga omnes ou impedirão a subida de novos recursos ao Supremo. Segundo o consultor-geral da União, Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy,
o argumento internacional tem sido repetido diuturnamente nos gabinetes
dos ministros pelos procuradores da Fazenda Nacional. “Dos países
membros da OCDE, em apenas 18 o fisco precisa de autorização judicial
para ter acesso a contas bancárias, e 16 são paraísos fiscais”, disse.
Fazem parte do Global Forum on Transparency and Exchange of Information
for Tax Purposes 101 nações, incluindo o Brasil. Até o fim do ano,
outros 20 países em desenvolvimento são esperados para integrar o grupo.
“Uma decisão do Supremo a favor do fisco seria uma denúncia indireta
aos tratados.” Outra frente em que o fisco trabalha é a
legislativa. Pelo menos três projetos de lei caminham no Congresso
Nacional. O Projeto de Decreto Legislativo 2.514/2002, do deputado
federal Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), aguarda parecer na Comissão de
Constituição e Justiça da casa. No Senado, o Projeto de Lei 140/2007, do
senador Demóstenes Torres (DEM-GO), espera desde 2007 para ser votado
pelo Plenário. O PLS 219/2008, também do senador, aguarda parecer da
CCJ. Em seminário organizado nesta segunda-feira (30/5) pelo
Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco)
em São Paulo, o deputado federal Vicente Cândido
comprometeu-se a propor ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo,
que apoie no Congresso a criação de uma norma obrigando os contribuintes
a fornecer dados bancários à administração tributária. “Uma derrota no
Supremo enfraqueceria todo o corpo da Lei Complementar 105”, afirmou. O
MJ já discute em audiências públicas um anteprojeto sobre proteção de
dados pessoais. É na Lei Complementar editada em 2001 que a
Receita se baseia para pedir aos bancos informações sobre a movimentação
dos contribuintes. Hoje, ao suspeitar de renda não declarada, o fisco
chama o contribuinte para dar explicações e, se não se convencer, abre
processo de fiscalização e pede ao banco que repasse dados sigilosos.
Movimentações superiores a sete vezes o rendimento declarado e o uso de
pessoas interpostas — os chamados “laranjas” — são consideradas provas
de sonegação. O que tanto as ADIs quanto o RE no STF questionam é a
constitucionalidade da norma por permitir a violação do sigilo sem
autorização da Justiça. Pelo menos cinco votos no Supremo são
conhecidos a favor do fisco: Joaquim Barbosa, Ayres Britto, Dias
Toffoli, Cármen Lúcia e Ellen Gracie. De outro lado estão Cezar Peluso,
Marco Aurélio, Ricardo Lewandwski, Celso de Mello e Gilmar Mendes. Se
forem mantidas as posições, o desempate, assim como no caso da vigência
da Lei da Ficha Limpa para 2010, caberá ao caçula, ministro Luiz Fux. Legalidade autista
Defensor da posição do fisco, o advogado Eurico Marcos Diniz De Santi,
professor de Direito Tributário da Fundação Getúlio Vargas, atacou os
pontos em que se sustentam os argumentos das ações dos contribuintes. O
primeiro deles foi o princípio da legalidade, segundo o qual o fisco não
poderia ignorar as normas vigentes que protegem o sigilo. “Sem a prova
do fato gerador, não há incidência tributária. Logo, a legalidade não se
realiza, tornando-se autista”, explicou. Segundo ele, não é possível à
Receita averiguar sonegação sem consultar extratos bancários. “A
fiscalização não pode se basear apenas nas declarações entregues, porque
o papel aceita qualquer coisa.” Nesse sentido, a ideia de
submeter ao Judiciário os pedidos de acesso violaria, segundo ele, o
princípio da separação dos Poderes. “Não é razoável que o Executivo
tenha de passar pelo Judiciário para cumprir sua função, que é cumprir a
lei”, diz. “Mover os pedidos para a Justiça é mitigar informações.” Na
opinião do auditor Rubens Nakano, presidente da
delegacia do Sindifisco em São Paulo, a Justiça permite procedimentos
protelatórios que podem causar a prescrição das cobranças. Na opinião de
outro auditor, Mauro Silva, membro do Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda, o aumento
do interesse dos contribuintes em ter suas contestações julgadas
administrativamente pelo fisco mostra que a expectativa no Judiciário é
baixa. “Devido ao grande número de processo, os juízes não têm condições
de fazer essa análise”, disse. “O acesso às informações bancárias
é importante não só para coibir os casos de sonegação, mas também para o
combate às organizações criminosas, fraudes do comércio exterior e
concorrência desleal”, afirmou o superintendente adjunto da Receita Fábio Kirzner Ejchel.
Segundo ele, só em São Paulo, desde que o fisco passou a trabalhar com
as informações bancárias, em 2003, foram iniciadas 8.360 ações fiscais
contra pessoas físicas e jurídicas, cobrando créditos no valor de R$ 28
bilhões. Lavagem de dinheiro, câmbio ilegal, caixa 2, sonegação e uso de
contas para abastecer o crime organizado foram algumas das
irregularidades reastreadas. Para De Santi, o argumento de que, com o poder de acesso, a Receita estabeleceria um big brother
permanente sobre os contribuintes cai diante do fato de que o fisco já
teve acesso a todas as movimentações por meio da cobrança da CPMF,
derrubada pelo Congresso em 2007. “Jamais houve devassa”, defendeu. Para
o presidente nacional do Sindifisco, Pedro Delarue Tolentino Filho, a tese tem sido usada até mesmo por empresas. “A pessoa jurídica não tem direito ao sigilo como tem a pessoa física”, afirmou. “A
própria Lei Complementar 105 protege o sigilo”, garantiu De Santi. A
norma proíbe a identificação da origem e da natureza dos gastos vistos
nos extratos, assim como sua divulgação. “A quebra é considerada crime”,
lembrou. A transferência de informações, segundo ele, só pode causar a
formação do crédito tributário — o que é dever do fisco — e não gerar os
danos morais e materiais de que fala o artigo 5º, inciso X, da
Constituição, sobre violação de intimidade. Presidente do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Fazenda, o advogado Antônio Augusto Rodrigues
alertou para o perigo que empecilhos às investigações da Receita
Federal podem significar. Segundo ele, dos 4,7 milhões de comunicados de
movimentações suspeitas feitos pelos bancos ao órgão desde que foi
criado, em 1998, a maior parte das irregularidades constatadas eram
sonegações. “O melhor lugar para esconder dinheiro é banco, justamente
por causa do sigilo”, disse. Segundo o consultor-geral da União,
Arnaldo Godoy, a última decisão do STF, a favor dos contribuintes por
cinco votos a quatro, desconsiderou a cláusula de reserva de Plenário
prevista no artigo 97 da Constituição. O dispositivo prevê que somente a
maioria absoluta dos membros dos tribunais pode declarar a
inconstitucionalidade de uma norma. Como não estavam presentes no
Supremo todos os ministros, a maioria exigida para a declaração de
inconstitucionalidade não se formou. Para Mauro Silva, membro do
Carf, o debate no Supremo se baseou apenas em um dos valores
constitucionais em discussão. “A Constituição preserva não só a
liberdade, mas também a igualdade e a solideriedade”, defendeu,
referindo-se à obrigação de que todos contribuam para o financiamento do
Estado. “A justiça fiscal exige que se identifique e tribute renda,
consumo e patrimônio, mas prevaleceu apenas a liberdade de se
contratar.” Segundo ele, o enfraquecimento do poder de fiscalização pode
ocasionar queda da arrecadação espontânea. “Só saímos da crise de 2008
porque fizemos desoneração, o que só foi possível porque tínhamos
fôlego”, defendeu. Risco potencial
A regra, no entanto, é a privacidade, no entendimento do conselheiro do Carf Damião Cordeiro de Moraes,
representante da Confederação Nacional das Instituições Financeiras. “O
sistema constitucional atribui a competência para quebrar o sigilo
apenas ao Judiciário”, defendeu. Segundo ele, a Receita é parte nos
processos e, por isso, não pode ter o privilégio de acessar as
informações sem o aval da Justiça. Segundo ele, pelo fato de os
bancos correrem o risco de responder por eventual quebra de sigilo,
todos os pedidos do fisco às instituições são comunicados aos
correntistas. “Se não houver resposta, o banco repassa os dados”, disse.
“Em média, um grande banco recebe cerca de 40 requisições desse tipo
por mês.” O impacto da abertura seria maior hoje, segundo o conselheiro.
“De cinco anos para cá houve uma inclusão bancária maior”, relatou.
Dados da CNF apontam que, há cinco anos, apenas 16% da população tinha
conta bancária. Hoje são 60%, divididos entre nove bancos públicos e 148
privados. Moraes lembrou ainda que um acordo de bitributação
entre Brasil e Estados Unidos, que depende apenas de parecer no Senado,
prevê que fiscais americanos acompanhem os agentes brasileiros durante
as ações nas empresas. “Ele poderá até mesmo conduzir a diligência”,
avisou. Para o tributarista Alessandro Fonseca,
do escritório Mattos Filho Advogados, o fisco quebra o sigilo do
contribuinte até mesmo quando exige que ele apresente seus extratos
bancários nas fiscalizações. “O objetivo é mensurar a capacidade
contributiva, mas para isso há outros meios legais”, disse. Um dos
exemplos dados pelo advogado é a identificação dos recolhimentos de
Imposto de Renda em relação a juros sobre capital próprio, retidos na
fonte. “É normal a Receita pedir extratos bancários para confirmar os
créditos na conta.” Segundo ele, preocupa o fato de o fisco pedir as
movimentações já na primeira intimação. “Os sistemas de arrecadação e
cruzamentos mostram o que a pessoa gasta.”
http://www.conjur.com.br/2011-jun-02/pressao-internacional-arma-fisco-quebra-sigilo-bancario
02/06/2011 |