Fisco patina ao avaliar concomitância de processosA
regra legal de que uma demanda não pode ser discutida ao mesmo tempo
nas esferas administrativa e judicial visa economizar tempo e custos, já
que a decisão da Justiça sempre prevalece, mas sua interpretação
radical pelos tribunais administrativos tem provocado injustiças. A
conclusão é de um grupo de estudos do Instituto Brasileiro de Estudos
Tributários. Segundo juízes e tributaristas, processos administrativos
têm sido extintos indevidamente com base na premissa. “A grande questão em torno da concomitância são as ações judiciais extintas sem julgamento do mérito”, explica a advogada Ana Clarissa Masuko Araújo,
membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da
Fazenda e professora do Instituto Nacional de Pós-Graduação, que
participa das reuniões no Ibet. Segundo ela, o mero ajuizamento da ação
não pode prejudicar o contribuinte, já que processos administrativos têm
a vantagem de suspender automaticamente a exigibilidade dos créditos
fiscais, mas nos judiciais, isso depende do juiz. Para o fisco, porém, é
uma questão de escolha. “A impetração do mandado de segurança já
basta para configurar a renúncia à instância administrativa, não sendo
relevante o resultado posterior da demanda, mesmo que o processo seja
extinto sem julgamento de mérito”, disse a Fazenda Nacional em recuso julgado pelo Carf em 2008. O
entendimento vem de interpretação conjunta de normas. A Constituição
Federal prevê, em seu artigo 5º, inciso XXXV, que a lei não excluirá de
apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito. Daí se chegou à
conclusão que, com base no Decreto-lei 1.737/1979, artigo 1º, parágrafo
2º e, mais tarde, na Lei de Execuções Fiscais — a Lei 6.830/1980 —, em
seu artigo 38, parágrafo único, processos administrativos não podem
correr simultaneamente aos judiciais quando ambos tratam do mesmo caso. “A
propositura, pelo contribuinte, de ação anulatória ou declaratória da
nulidade do crédito da Fazenda Nacional importa em renúncia ao direito
de recorrer na esfera administrativa e desistência do recurso
interposto”, diz o Decreto-lei. E “a propositura, pelo contribuinte, da
ação prevista neste artigo importa em renúncia ao poder de recorrer na
esfera administrativa e desistência do recurso acaso interposto”,
prescreve a LEF ao se referir a contestações em execuções fiscais,
mandados de segurança e ações de repetição de indébito e anulatórias. O
Regimento Interno da Câmara Superior de Recursos Fiscais também
positivou o raciocínio. Na versão atual, a previsão é do artigo 78,
parágrafo 2º: “a propositura pelo contribuinte, contra a Fazenda
Nacional, de ação judicial com o mesmo objeto, importa a desistência do
recurso”, o que também determinou o Ato Declaratório Normativo 3/1996,
da Coordenação-Geral da Tributação da Receita Federal, e a Súmula 1 do
antigo 1º Conselho de Constribuintes do Carf. Para Ana Clarissa,
enquanto a ação judicial não for julgada no mérito, o contribuinte ainda
não teve sua causa analisada, e não pode ser privado do direito de
discutir administrativamente. É o que ela afirma em artigo publicado na
obra Processo Tributário Analítico, coletânea de textos
elaborados pelo grupo de estudos do qual faz parte no Ibet, coordenado
pelo professor e juiz federal Paulo Cesar Conrado. O livro,
recém-lançado pela editora Noeses, aborda as principais questões
processuais discutidas em ações tributárias. Desencontro taxativo
No texto, a tributarista justifica sua opinião simulando a seguinte
situação: um importador é autuado pela Receita por classificação errônea
de produto na Tabela de Incidência do IPI e no pagamento da Tarifa
Externa Comum. Para o fisco, tanto o Imposto de Importação quanto o IPI
foram pagos a menor. O contribuinte contesta o auto de infração na
Receita, alegando que a multa se baseou apenas na documentação da
importação, e não na avaliação in loco do produto importado,
que comprovaria a classificação escolhida. Depois, entra com mandado de
segurança para anular o lançamento do fisco. Segundo o artigo, não
é raro em situações como essa o fisco extinguir o processo
administrativo diante do ajuizamento do mandado de segurança. Porém,
também não é raro que o juiz, entendendo que o pedido do contribuinte
demandaria produção de provas — o que é inviável em mandados de
segurança, que exigem direito líquido e certo —, arquive o mandado de
segurança sem julgar seu mérito. A empresa, segundo ela, embora não
tenha tido a pretensão sequer avaliada pela Justiça, perderia também a
chance de contestar administrativamente a autuação. “Há casos
inclusive de mandados de segurança que apenas pedem proteção ao sigilo
bancário frente a requisições de informações pelo fisco, mas são
considerados ações concomitantes a impugnações de autos de infrações”,
conta Ana Clarissa. “O processo administrativo fiscal é muito importante
para a empresa, já que os julgadores desses tribunais são
especializados na matéria.” Segundo ela, uma forma de acabar com o
problema tanto na esfera federal quanto na estadual seria estabelecer a
possibilidade de sobrestamento dos processos administrativos até o
julgamento de mérito das ações judiciais. Para o juiz federal Paulo César Conrado,
titular da 14ª Vara Federal de São Paulo e professor do Ibet, é
perigoso extinguir precocemente o processo administrativo porque um erro
do fisco pode causar uma inscrição indevida da empresa em dívida ativa e
impedir a obtenção de certidões, caso o Judiciário demore a entender a
situação. “A coexistência só prejudica o processo administrativo se a
decisão judicial transitar em julgado”, afirma. Segundo ele, é
difícil para o julgador obter apoio na jurisprudência porque cada
decisão se baseia em fatores muito particulares dos casos. “Situações
como essa só são corrigidas quando a execução fiscal chega à Justiça,
onde o contribuinte pode alegar que a via administrativa lhe foi
sonegada”, explica. Regra conveniente
Diante do acúmulo de processos, a extinção de contestações
administrativas sob o pretexto de concomitância é a saída para limpar os
escaninhos dos tribunais, de acordo com o tributarista Julio de Oliveira,
do escritório Machado Associados. Ex-juiz do Tribunal de Impostos e
Taxas da Fazenda paulista, Oliveira acredita ser difícil um processo
administrativo ser idêntico a um judicial. “Mesmo que o mérito seja o
mesmo, sempre há questões não tratadas na via judicial, como o
enquadramento correto da multa, os índices de correção aplicados e
demais aspectos laterais peculiares”, diz. Na verdade, o conceito
de concomitância é uma ginástica interpretativa do direito processual.
Por analogia, ele reflete as características da litispendência, essa sim
prevista no Processo Civil, como explica o consultor jurídico Rodrigo Dalla Pria,
professor do Ibet de Sorocaba (SP) e juiz substituto no Tribunal de
Impostos e Taxas de São Paulo. “Usamos a tripla identidade prevista no
artigo 301 do Código de Processo Civil: mesma parte, mesma causa de
pedir e mesmo pedido”, diz. Porém, segundo ele, é quando o critério não é
seguido à risca que surgem os problemas. “Julgadores administrativos às
vezes reconhecem a concomitância pelo simples fato de um mesmo crédito
ser contestado nas duas vias. Mas é possível contestar de vários pontos.
Se a causa de pedir é diferente, por exemplo, não existe mais a tripla
identidade.” Servem como exemplo os corriqueiros mandados de
segurança preventivos alegando inconstitucionalidade de tributo, antes
da constituição do crédito. Diante de uma liminar favorável ao
contribuinte, o fisco constitui o crédito para não perder o direito de
fazê-lo, mas mantém sua exigibilidade suspensa. Se a liminar porventura
cair, é lavrado um auto de infração. Nesse tipo de situação, segundo
Dalla Pria, é grande a chance de a contestação administrativa do auto
cair sem ser julgada. “O mandado de segurança ataca coisas não
concretas, como inconstitucionalidade. Seria muito difícil ter os mesmos
argumentos de uma impugnação administrativa”, ironiza. É o que
ocorria, segundo ele, com importações feitas por empresas não
contribuintes do ICMS. Até a edição da Emenda Constitucional 33, em 2001
— depois da qual o Supremo Tribunal Federal adotou a tese do fisco —,
não estava claro se não contribuintes deveriam se inscrever para
recolher o ICMS nesses casos. A situação envolvia, por exemplo,
hospitais que importavam equipamentos médicos caros. Era frequente a
apreensão desses equipamentos pelas Secretarias de Fazenda para forçar o
pagamento do imposto. A saída eram mandados de segurança alegando que
não se pode usar apreensões como instrumento de coação, a chamada sanção
política. Liberado o equipamento, o fisco lavrava auto de infração para
aplicação de multa, que era impugnado pelo hospital. Estava configurada
novamente a situação que derrubaria a contestação administrativa, mesmo
que ela não tivesse tratado do caso levado ao Judiciário. “No mandado
de segurança, alega-se inconstitucionalidade. Já na impugnação,
ilegalidade, devido à falta de previsão de recolhimento por não
contribuintes na Lei Complementar 87, de 1988”, diferencia Dalla Pria. Casos recentes envolvendo a Lei Complementar 102, a chamada Lei Kandir, têm sido frequentes no trabalho da advogada Daniella Zagari Gonçalves,
do escritório Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados. Segundo ela,
as restrições para apropriação de créditos de ICMS na aquisição de ativo
imobilizado, energia elétrica e serviços de telefonia, feitas pela Lei
Complementar a partir de 2000, ferem o princípio constitucional da
não-cumulatividade dos tributos. “Nos processos administrativos, mesmo
alegando também que a autuação estava errada, os argumentos sequer foram
apreciados”, conta. Pelo menos 50 casos como esse passaram por suas
mãos desde 2009. Porém, se as contestações foram negadas em primeira
instância, voltaram a tramitar com decisões favoráveis do TIT paulista. Joio e trigo
Em São Paulo, a solução veio com a Lei 13.457/2009. De acordo com seu
artigo 30, parágrafo 2º, só se pode reconhecer a concomitância se o
objeto discutido nos processos for o mesmo. “O curso do processo
administrativo tributário, quando houver matéria distinta da constante
do processo judicial, terá prosseguimento em relação à matéria
diferenciada, conforme dispuser o regulamento”, diz o dispositivo. “A
lei está colocando as coisas nos eixos”, diz Rodrigo Dalla Pria. Segundo
ele, em caso recente o tribunal manteve a tramitação de processo
administrativo contra cobrança de ICMS sobre leasing na importação de
aviões. “O relator do processo reconheceu a concomitância apenas no que
era idêntico à petição judicial.” Nessas condições, o pedido coincidente
é ignorado pelo fisco. Também foi esse o motivo pelo qual a 1ª
Turma Ordinária da 2ª Câmara do Conselho Administrativo de Recursos
Fiscais do Ministério da Fazenda anulou
a suspensão de um processo, determinada em primeiro grau pela Receita
Federal. Em julgamento de 2009, o tribunal administrativo do fisco
federal reconheceu que, existindo diferenças entre argumentos de ambos
os processos, o que não foi alegado na Justiça deve continuar tramitando
pela via administrativa. “O processo administrativo deve seguir seu
curso normal, pois a sua análise, naquilo que não for concomitante com o
feito judicial, independe do resultado da ação”, diz a ementa da
decisão. A intenção frustrada da Receita era suspender o processo
até o trânsito em julgado da ação judicial. A Delegacia de Julgamento da
Receita em São Paulo afirmou que a seguradora envolvida no caso,
autuada por deixar de recolher R$ 284 mil em CSLL, tinha a seu favor
liminar e sentença reduzindo a alíquota para os parâmetros anteriores à
Emenda Constitucional 10/1996, de 18%, e não de 30%. Com as multas, o
crédito lançado pelo fisco foi de R$ 741 mil — apesar de a Justiça haver
decretado a suspensão da exigibilidade da dívida. A empresa contestou
administrativamente a punição, e não apenas o mérito da causa, o que
terminou por manter o processo tramitando, por decisão final do Carf. Curto-circuito
Trombadas entre processos não acontecem apenas quando correm em
diferentes Poderes. Há casos dentro da própria Receita, como pedidos de
compensação e impugnações de autos de infração relativos aos mesmos
créditos. Quando tem um pedido de compensação não homologado ou com
créditos glosados, o contribuinte contesta. Se ao analisarem o processo,
os auditores decidem fiscalizar os períodos informados, é possível que
um processo paralelo seja aberto para autuar o contribuinte por erro.
“Embora sejam conexos, os dois processos podem cair com relatores
diferentes, e ter decisões opostas”, explica Ana Clarissa Araújo.
Segundo a conselheira do Carf, essa é uma situação ainda sem solução no
regimento interno do órgão.
http://www.conjur.com.br/2011-mai-18/fisco-patina-avaliar-coincidencia-acoes-administrativas-judiciais
18/05/2011 |