O Código Civil vigente positivou, no seu artigo 50, a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica, criação do direito
anglo-saxão, que tinha sido inicialmente prevista no Código de Defesa do
Consumidor em 1990, estendendo para as relações civis em geral a norma
que visa a impedir a utilização fraudulenta de pessoas jurídicas,
normalmente em detrimento de seus credores.
Prevê o referido dispositivo que, "em caso de abuso da personalidade
jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão
patrimonial, o juiz pode decidir, a requerimento da parte ou do
Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os
efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos
aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa
jurídica".
Ocorrendo, pois, qualquer espécie de desvirtuação da utilização da
pessoa jurídica, com o intuito de fraudar credores, deixa de existir a
autonomia patrimonial, não mais havendo a separação entre o sócio e a
sociedade, alcançando-se os bens desta última para fazer frente às
dívidas daquele.
Como ensina Fábio Ulhoa Coelho, com base na aludida norma legal, "o
juiz pode decretar a suspensão episódica da eficácia do ato constitutivo
da pessoa jurídica, se verificar que ela foi utilizada como instrumento
para a realização de fraude ou de abuso de direito". (Desconsideração
da Personalidade Jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989,
página 92).
Mais recentemente, de outro lado, tomou forma uma variante da teoria
em foco, de modo a ser aplicada inversamente, ou seja, o atingimento do
patrimônio da sociedade para satisfazer dívidas de sócio, em regra o
controlador. Trata-se da teoria da desconsideração da personalidade
jurídica inversa.
A aplicação prática da desconsideração inversa depende de prova concludente
O
Superior Tribunal de Justiça (STJ), em meados de 2010, por meio de
acórdão relatado pela ministra Nancy Andrighi, no julgamento do Recurso
Especial nº 948.117, aplicando a aludida teoria, asseverou que "a
desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo
afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente
do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita,
atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a
responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador".
O princípio informador da interpretação extensiva emprestada à teoria
é exatamente o mesmo que ensejou sua criação e que está calcado na
vedação do abuso do direito e da fraude contra credores. Assim
pontificou a ministra Nancy Andrighi ao decidir que "a finalidade da
disregard doctrine é combater a utilização indevida do ente societário
por seus sócios, o que pode ocorrer também nos casos em que o sócio
controlador esvazia o seu patrimônio pessoal e o integraliza na pessoa
jurídica". Dessa forma, conclui-se "de uma interpretação teleológica do
artigo 50 do Código Civil de 2002, ser possível a desconsideração
inversa da personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade
em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador, conquanto
preenchidos os requisitos previstos na norma".
Assim, a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica
inversa representa uma importante arma de combate à transferência
fraudulenta de patrimônio pessoal ao ente societário, uma vez que,
devidamente comprovado o animus nocendi e o prejuízo do credor, pode-se
decretar - à feição do que ocorre com a fraude de execução - a
ineficácia do elemento coletivo, atingindo-se seus bens.
Não se pode, contudo, banalizar a aplicação do instituto, notadamente
na forma inversa, visto que, como é notório, as sociedades que, em
princípio, distinguem-se da pessoa de seus sócios, ostentam fundamental
importância no fomento das atividades econômicas e na geração de
riquezas.
"Se por um lado a distinção entre a responsabilidade da sociedade e
de seus integrantes serve de estímulo à criação de novas empresas, por
outro visa também preservar a pessoa jurídica e a manutenção de seu fim
social, que seria fadada ao insucesso se fosse permitido,
descriteriosamente, responsabilizá-la por dívidas de qualquer sócio,
ainda que titular de uma parcela ínfima de quotas sociais". É por isso
que "somente em situações excepcionais em que o sócio controlador se
vale da pessoa jurídica para ocultar bens pessoais em prejuízo de
terceiros é que se deve admitir a desconsideração inversa". (Recurso
Especial nº 948.117).
Não se pode jamais perder de vista, assim, em vista das ponderações
acima desfiadas, que a desconsideração da personalidade jurídica inversa
tem aplicação ainda mais restrita que sua versão original e direta. Seu
âmbito de incidência é ainda mais restrito, sendo reservado a casos
absolutamente excepcionais em que demonstrados por provas incontestáveis
o ardil do sócio (elemento subjetivo) e o prejuízo do credor (elemento
objetivo), tudo sempre sob a chancela do devido processo legal.
O relevante, ademais, é que a pessoa jurídica não está sujeita a ter
seu patrimônio alcançado em função de dívidas de todo e qualquer sócio.
Salta aos olhos que apenas a fraude praticada pelo controlador da
sociedade tem o condão de proporcionar que os bens sociais sejam
excutidos, eis que somente ele, na direção da sociedade, pode
manipulá-la para servir aos seus interesses particulares.
Sócios minoritários ou que não tenham poder de decidir acerca da
condução da vida societária, evidentemente, respondem pelas suas dívidas
apenas com seu patrimônio pessoal, não sendo franqueado aos credores
que extrapolem a esfera individual para alcançar a coletiva.
A verdade é que a aplicação prática da teoria da "disregard of legal
entity", seja na forma direta, seja de maneira inversa, depende de prova
concludente do abuso (desvio de finalidade ou confusão patrimonial) a
ser produzida sob o amparo do devido processo legal e com toda a
oportunidade de defesa àquele que poderá responder por dívida de
terceiro.
Daniel G. M. Sanfins
05/04/2011
Daniel Gustavo Magnane Sanfins é sócio da Duarte Garcia, Caselli Guimarães e Terra Advogados
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