A figura do administrador judicial, criada pela Lei nº 11.101, (Lei de
Recuperação Judicial e Falências - LRF), de 2005, veio a substituir os
antigos síndico na falência e comissário da concordata, previstos no
revogado Decreto-lei nº 7.661, de 1945. No direito italiano, recebe a
denominação de curatore. No Brasil, tal como na França e na Bélgica, foi
denominado inicialmente de síndico, termo que expressa justamente a
pessoa incumbida de administrar bens alheios, designando tanto o síndico
de condomínio quanto o síndico da falência.
A extrema importância do administrador judicial, tanto na falência
quanto na recuperação, vem ressaltada pela doutrina. Rubens Requião,
citando a doutrina francesa de Percerou e Desserteaux, leciona que o
administrador judicial representa uma figura fundamental à administração
da falência. "É o órgão essencial da falência, e ninguém, dentro do
processo, tem um lugar comparável ao seu. Não há nada de exagero,
acentuam esses autores, em dizer que é sobretudo de seu valor moral e
profissional que depende, de fato, o sucesso da instituição", diz.
Há controvérsia na doutrina sobre a natureza jurídica do
administrador judicial, especialmente no que concerne à afirmação de que
ele se equipara a funcionário público para efeitos penais.
Carvalho de Mendonça sustenta ser um órgão da massa dos credores na
sua unidade. Para Miranda Valverde, trata-se de um órgão ou agente
auxiliar da Justiça, criado a bem do interesse público para a consecução
da finalidade do processo de falência.
O conjunto de atribuições desempenhadas pelo administrador judicial é
entendido pela doutrina ora como função, ora como cargo e ainda como
múnus público. Na LRF, o legislador menciona função no parágrafo 1º do
artigo 30 e cargo nos artigos 22, III "r", 30 e 33. Na legislação
falimentar italiana, ele é considerado funcionário público no exercício
de suas funções (artigo 30 do D. 267/1942).
Requião indica ser um cargo, do qual toma posse o administrador
judicial após a nomeação. Não obstante, o eminente doutrinador destaca
que o síndico "não é, entretanto, funcionário público, embora seja a
este equiparado para os efeitos penais". Já Amador Paes de Almeida
destaca que consiste numa função eminentemente pública.
O administrador pode ser equiparado a funcionário público para fins penais
Ricardo Negrão assevera que o administrador judicial exerce um múnus
público, fazendo referência a trecho da obra de Nelson Abrão, em que
afirma ser "um particular exercente de múnus público, com a consequente
carga de responsabilidade na esfera penal". Múnus, em latim, significa
encargo, dever, ônus, sendo um múnus público¸ decorrente de lei,
exatamente como os encargos exercidos pelo perito judicial, depositário,
testamenteiro, tutor e curador, assim referidos pelo Código de Processo
Civil (CPC).
Com relação aos auxiliares da Justiça citados acima, observe-se que
não há um consenso doutrinário sobre a inclusão daqueles que
simplesmente exercem múnus/encargos públicos como equiparados a
funcionários públicos. Damásio de Jesus enquadra o perito judicial como
tal, mas não os tutores, curadores e o administrador judicial. Do mesmo
modo, Delmanto entende que os peritos o são, mas não o administrador
judicial.
Nesse sentido, juristas como Ulhoa Coelho, Requião e Santa Cruz Ramos
sustentam que o administrador judicial se equipara a funcionário
público para os efeitos penais, o que significa dizer que ele poderá
figurar como sujeito ativo dos crimes previstos no Capítulo I do Título
XI do Código Penal (CP).
O artigo 327 do código amplia o conceito de funcionário público,
estabelecendo que são equiparados a funcionário público para os efeitos
penais "quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo,
emprego ou função pública". Vê-se, a princípio, que para inserir o
administrador judicial no alcance do referido dispositivo, seria
necessário adotar as posições que defendem ser um cargo ou função
pública, e não apenas múnus.
Para os que entendem ser o administrador judicial exercente apenas de
um múnus público, como o procurador de Justiça fluminense e professor
Ricardo Martins, seria essa a razão pela qual foi inserido no rol do
parágrafo 1º do artigo 168 do CP, como causa de aumento de pena do crime
de apropriação indébita, praticado por particular, não podendo praticar
o crime de peculato do artigo 312 do código. Nessa linha, Heleno
Fragoso destaca que a equiparação do artigo 327 não seria aplicável
àqueles que se restringem ao exercício de um múnus público. Já na visão
de Rogério Grecco, para os fins do referido artigo 168, "as figuras do
síndico e do liquidatário foram abolidas, razão pela qual não mais
poderão ser consideradas".
Especificamente quanto ao crime de apropriação indébita, diante do
princípio da especialidade, aplicar-se-ia o artigo 173 da LRF (desvio,
ocultação ou apropriação de bens), em detrimento do artigo 168 do CP, em
consonância com a jurisprudência do STJ (RHC 19658/RS de 24/04/07).
Convém lembrar que o administrador não é mais escolhido
obrigatoriamente entre os credores nem representa os interesses destes
na falência ou na recuperação. Desse modo, é válido sustentar que, à
exceção do crime de peculato, o administrador judicial seria,
efetivamente, equiparado a funcionário público para fins penais,
considerado o manifesto interesse público inerente ao processo
falimentar e de recuperação. Assim, ele poderia figurar como sujeito
ativo dos demais crimes aplicáveis ao funcionário público do CP, tais
como concussão, prevaricação, advocacia administrativa e abandono de
função.
Ronald A. Sharp Junior e Fernanda de C. Antonello
04/04/2011
Ronald A. Sharp Junior e Fernanda de Carvalho Antonello são,
respectivamente, professor da pós-graduação da FGV-Rio, auditor fiscal
do trabalho e ex- advogado do BNDES; e advogada
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04/04/2011 |