Fez-se luz, finalmente, para resolver-se de uma vez por todas o problema
crônico do calote judicial público, a negação continuada da cidadania
pelo Estado na forma dos precatórios não pagos. Essa luz acendeu-se por
ocasião do "Encontro Nacional do Judiciário sobre Precatórios",
realizado em setembro passado, onde representantes de todos os tribunais
do país discutiram os efeitos da Emenda Constitucional nº 62, de 2009,
resultado final da conhecida "PEC do Calote".
O encontro, sob a batuta do ministro Ives Gandra Martins Filho,
serviu também para tornar visíveis os números bilionários da
irresponsabilidade fiscal de governadores e prefeitos, confortáveis há
décadas com a renovação de moratórias sucessivas, cada um deixando o
problema para o sucessor, e este para o seguinte, "sine fine" (do latim,
sem fim). O número oficial declarado do calote é de R$ 87 bilhões, mas
estima-se algo bem acima de R$ 100 bilhões!
O fato é que não existem números disponíveis para as dívidas em
gestação atualmente, nem mesmo contabilização, provisões ou reservas
para pagamento seja do passado, presente ou futuro. Em suma: nenhuma
governança. O pagamento dos precatórios sempre foi uma questão difícil,
uma vez que o Estado não é um devedor comum. No entanto, como se vê, o
quadro nunca apresentou tamanha dramaticidade quanto o registrado hoje. O número oficial do calote é de R$ 87 bilhões, mas estima-se mais de R$ 100 bilhões
Esta dura realidade tocou profundamente as lideranças do Judiciário,
que ao fim do encontro proclamaram solenemente que o fim da tolerância
às moratórias está próximo. Vale dizer, mesmo sob a vigência da Emenda,
elas não serão mais permitidas. Basta. Estados e prefeituras terão de
acertar suas contabilidades, pagar suas contas e acabar com o calote
como ferramenta de gestão financeira.
Vale lembrar que a OAB e outras instituições da sociedade civil
ingressaram com várias ações diretas de inconstitucionalidade (Adins) no
Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a Emenda nº 62.
Inserindo-as em pauta, o Judiciário assumirá, sem dúvida, uma posição
pró-ativa no processo de diagnóstico e solução do problema. Há sinais
claros de inquietação, aqui e ali. Em São Paulo, por exemplo, o Tribunal
de Justiça notificou as prefeituras da capital, Guarujá e Santo André,
dentre outras, que os depósitos mínimos permitidos pela EC nº 62 são
insuficientes para a redução gradual e segura do estoque de dívida. Ou
seja: tais depósitos deverão ser aumentados, imediatamente.
Vitoriosas essas ADIs, o que acontecerá? Nada dramático.
Especialistas em finanças públicas desenvolveram algumas opções
práticas, realistas e objetivas, sendo digna de nota, por exemplo, a
reestruturação de todas as dívidas judiciais públicas (estaduais e
municipais), necessariamente com o aval da União ou emissão de papéis
federais em substituição. É possível também consolidar a compensação
tributária de dívida ativa com precatórios, como já o fez o Estado do
Rio de Janeiro.
Outra opção é aceitar o precatório como "moeda" para financiamentos
da casa própria (programa Minha Casa, Minha Vida); materiais de
construção (como já adotado em Mato Grosso); cotas de fundos de
infraestrutura, inclusive para Copa do Mundo, Olimpíadas, aterros
sanitários, concessões de rodovias, portos e aeroportos; fundos
imobiliários e aquisição de imóveis públicos; contribuição para
aposentadoria de servidores públicos; e créditos subsidiados do BNDES e
outras instituições oficiais.
O problema do financiamento da dívida é, na realidade, dos devedores,
e não dos credores. Cada um que saia a campo para escolher seus
caminhos, dentro de seu perfil de receitas e dívida. O certo é que os
mecanismos de utilização dos precatórios (sempre voluntariamente para os
credores) diminuirão gradativamente o estoque de dívidas, trazendo
consigo segurança jurídica para investimentos, além do efeito colateral
de enviar para o arquivo morto milhões de processos.
Enfim, o resgate do prestígio do Judiciário e a exigência de
comportamento ético para governantes, com sanções conhecidas e
praticadas, podem ser cruciais para uma mudança no Brasil com relação às
dividas públicas. A Justiça faz parte da cesta básica da cidadania,
como saúde, transporte, educação, segurança e outros bens
constitucionais, e a melhor maneira de acabar com os precatórios no
futuro será exigir o cumprimento das leis, contratos e ordens judiciais.
Estamos a um passo dessa transformação histórica.
Ophir Cavalcante e Flávio Brando
26/10/2010
Ophir Cavalcante e Flávio Brando são, respectivamente,
presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e presidente
da comissão especial de defesa dos credores públicos da entidade
http://www.valoronline.com.br/impresso/legislacao-tributos/106/327593/luz-no-fim-do-tunel-para-os-precatorios
26/10/2010 |