“Você tem o direito de ficar calado. Tudo o
que disser pode e será usado contra você no tribunal.” A primeira parte
do “Aviso de Miranda” é bastante conhecida, pelo uso rotineiro em filmes
e seriados policiais norte-americanos. Mas os mesmos preceitos são
válidos no Brasil, que os elevou a princípio constitucional. É o direito
ao silêncio dos acusados por crimes.
Esse conceito se
consolidou na Inglaterra e servia de proteção contra perseguições
religiosas pelo Estado. Segundo Carlos Henrique Haddad, até o século
XVII prevalecia o sistema inquisitorial, que buscava a confissão do réu
como prova máxima de culpa. A partir de 1640, no entanto, a garantia
contra a autoincriminação tornou-se um direito reconhecido na “common
law", disseminado a ponto de ser inserido na Constituição
norte-americana décadas mais tarde. A mudança essencial foi transformar o
interrogatório de meio de prova em meio de defesa – não deve visar à
obtenção de confissão, mas sim dar oportunidade ao acusado de ser
ouvido.
No Brasil, a previsão constitucional é expressa. Diz o
inciso LXIII do artigo 5º: “o preso será informado de seus direitos,
entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a
assistência da família e de advogado”. A Convenção Americana de Direitos
Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, da
Organização das Nações Unidas (ONU) seguem a mesma linha.
Antes,
já era reconhecido, e o Código de Processo Penal (CPP), de 1941, ainda
em vigor, prevê tal proteção. Porém a abrandava, ao dispor que o juiz
deveria informar ao réu que não estava obrigado a responder às
perguntas, mas que seu silêncio poderia ser interpretado em prejuízo da
defesa. O texto foi alterado em 2003, para fazer prevalecer o conteúdo
real do princípio constitucional. Diz agora o CPP: “O silêncio, que não
importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da
defesa.”
Na doutrina, o princípio é chamado de “nemo tenetur se
detegere” ou princípio da não autoincriminação. Diversos casos no
Superior Tribunal de Justiça (STJ) definem os limites para o exercício
desse direito fundamental, revelando sua essência e consequências
efetivas.
BafômetroUm exemplo recente
da aplicação do preceito diz respeito à Lei n. 11.705/08, conhecida como
Lei Seca. Essa norma alterou o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) para
estabelecer uma quantidade mínima e precisa de álcool no sangue a
partir da qual se torna crime dirigir.
Antes, o CTB previa
apenas que o motorista expusesse outros a dano potencial em razão da
influência da bebida ou outras substâncias. Não previa quantidade
específica, mas exigia condução anormal do veículo. “Era possível,
portanto, o exame de corpo de delito indireto ou supletivo ou, ainda, a
prova testemunhal, sempre, evidentemente, que impossibilitado o exame
direto”, afirma o ministro Og Fernandes em decisão da Sexta Turma de
junho de 2010.
Porém, recentemente, a Sexta Turma produziu
precedente de que, com a nova redação, a dosagem etílica passou a
integrar o tipo penal. Isto é, só se configura o delito com a
quantificação objetiva da concentração de álcool no sangue – que não
pode ser presumida. Agora, só os testes do bafômetro ou de sangue podem
atestar a embriaguez. E o motorista, conforme o princípio
constitucional, não está obrigado a produzir tais provas (HC 166.377).
Leia mais sobre a decisão:
Falta de obrigatoriedade do teste do bafômetro torna sem efeito prático crime previsto na Lei SecaMas,
é bom lembrar, o STJ não concede habeas corpus preventivo para garantir
que o motorista, de forma abstrata, não seja submetido ao exame. É que
só se admite o salvo-conduto antecipado em caso de lesão iminente e
concreta ao direito de ir e vir do cidadão (RHC 27373). E também não
reconhece o problema da submissão ao bafômetro – ou da ausência do exame
– na vigência da redação anterior do CTB (HC 180128).
Mentiras sincerasTambém
não se admite a produção deliberada de provas falsas para defesa de
terceiros. Nesse caso, a pessoa pode incorrer em falso testemunho. É o
que decidiu o STJ no HC 98.629, por exemplo.
Naquele caso, o
autor de uma ação de cobrança de honorários contra um espólio apresentou
como testemunha uma pessoa que afirmou ter assinado documento dois anos
antes do real, para embasar a ação de cobrança. Mesmo advertido das
consequências legais, a testemunha confirmou expressa e falsamente ter
assinado o documento na data alegada pelo credor desleal, o que foi
desmentido por perícia. Foi condenado por falso testemunho.
Não é
o mesmo que ocorre com a testemunha que, legitimamente, mente para não
se incriminar. Nem com seu advogado, que a orienta nesse sentido. A
decisão exemplar nesse sentido foi relatada pelo ministro Hamilton
Carvalhido. No HC 47125, o acusado era advogado de réu por uso de
drogas, que mentiu sobre a aquisição do entorpecente em processo
envolvendo um traficante. O pedido do advogado foi atendido, e o usuário
foi beneficiado por habeas corpus de ofício.
Para os ministros,
a conduta da testemunha que mente em juízo para não se incriminar, sem a
finalidade especial de causar prejuízo a alguém ou à administração da
justiça é atípica. Por isso, não poderia ser típica a do advogado que
participa do suposto ilícito.
É o mesmo entendimento que se
aplica a alguns “colaboradores” de Comissões Parlamentares de Inquérito
(CPIs). O STJ se alinha ao entendimento do Supremo Tribunal Federal
(STF) e garante o direito de silenciar àquele que testemunha perante CPI
sob risco de se incriminar. É o que se verificou no HC 165902, no qual
se expediu salvo-conduto liminar em favor de empresário que seria ouvido
na CPI da Codeplan na condição de testemunha, mas cuja empresa era
investigada em inquérito perante o STJ
É também o que ocorre
quando o preso em flagrante se identifica à autoridade policial com nome
falso. Em julgado do STJ, o réu foi absolvido do crime de falsa
identidade por ter se apresentado incorretamente e obtido soltura
passageira em razão disso. A Sexta Turma considerou que o ato era
decorrente apenas de seu direito à não autoincriminação, e não ofensa à
ordem pública (HC 130.309). Essa tese específica está em discussão nos
juizados especiais criminais, que
tiveram os processos sobre esse tema suspensos pelo STJ para uniformização de entendimento (Rcl 4.526).
Outra
aplicação é impedir que o julgador leve em consideração atitudes
similares para fixar, em desfavor do réu, a pena por um crime. No HC
139.535, a Quinta Turma afastou o aumento da pena aplicado por juiz
contra condenado por tráfico em razão de ter escondido a droga ao
transportá-la.
Entretanto, a situação é diferente quanto às
perguntas de um corréu em interrogatório. Nessa hipótese, as duas Turmas
penais do STJ divergem. Na Sexta Turma, prevalece o entendimento de que
o corréu pode ser submetido a perguntas formuladas por outro acusado.
Resguarda, porém, o direito de não as responder. Segundo entende o
colegiado, nesses casos se preserva o direito à ampla defesa de ambos os
acusados (HC 162.451).
Por outro lado, a Quinta Turma entende
que a participação da defesa de outros acusados na formulação de
perguntas ao réu coage o interrogado. “Carece de fundamento pretender-se
que, no concurso de agentes, o réu devesse ficar submetido ao
constrangimento de ter que responder ou até mesmo de ouvir
questionamentos dos advogados dos corréus. Admitir-se esta situação, não
prevista em lei, seria uma forma de, indiretamente, permitir uma
transgressão às garantias individuais de cada réu e até mesmo querer
introduzir, entre nós, a indução, através de advogados de correús, da
autoacusação”, afirma voto do ministro Felix Fischer (HC 100.792)
NardoniO
casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá tentou recorrer ao
princípio para afastar a acusação por fraude processual no caso do
homicídio pelo qual foi condenado. O pedido da defesa sustentava não
poder ser autor do crime de fraude processual aquele a quem é imputado o
crime que se tenta encobrir – homicídio qualificado, no caso –, já que
ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo.
O Ministério Público Federal (MPF) manifestou-se favorável ao pedido. Mas
a Quinta Turma do STJ entendeu de forma diversa.
Segundo o voto do ministro Napoleão Nunes Maia, o princípio não abrange
a possibilidade de os acusados alterarem a cena do crime.
“Uma
coisa é o direito a não autoincriminação. O agente de um crime não é
obrigado a permanecer no local do delito, a dizer onde está a arma
utilizada ou a confessar. Outra, bem diferente, todavia, é alterar a
cena do crime, inovando o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, para,
criando artificiosamente outra realidade ocular, induzir peritos ou o
juiz a erro”, argumentou o relator.
Processo administrativo No
âmbito administrativo, quando se apura responsabilidades para aplicação
de sanções, o servidor também é protegido pelo direito à não
autoincriminação. É o que decidiu o STJ no RMS 14.901, que determinou a
anulação da demissão de servidor. Entre outras razões, a comissão
disciplinar constrangeu o servidor a prestar compromisso de só dizer a
verdade nos interrogatórios.
Para a ministra Maria Thereza de
Assis Moura, relatora do caso, o agir da comissão “feriu de morte essas
garantias, uma vez que, na ocasião dos interrogatórios, constrangeu a
servidora a falar apenas a verdade, quando, na realidade, deveria
ter-lhe avisado do direito de ficar em silêncio”. “Os interrogatórios da
servidora investigada, destarte, são nulos e, por isso, não poderiam
subsidiar a aplicação da pena de demissão, pois deles não pode advir
qualquer efeito”, completou.