Planejamento tributário sob a ótica da JustiçaDiego Bomfim 31/08/2010
Em recente decisão, o
Superior Tribunal de Justiça (STJ), analisando um caso típico de
planejamento tributário conhecido como incorporação às avessas (quando
uma empresa deficitária incorpora uma empresa superavitária), entendeu
por não conhecer recurso especial apresentado pelo contribuinte. Esse
"não conhecimento" ocorre quando o tribunal decide por não adentrar no
mérito do recurso, indicando impossibilidade de julgar a demanda. Há
uma série de razões que podem sustentar essa medida, mas, nos limites
deste texto, basta saber que ao STJ não é permitido rediscutir provas já
firmadas nos autos, cabendo apenas decidir sobre a correta aplicação do
direito aos fatos que, necessariamente, precisam estar constituídos
pelas provas produzidas nas instâncias inferiores. A
partir desse julgamento, muitas notícias foram veiculadas, ora
indicando que o tribunal teria julgado a própria legalidade de se
realizar incorporações às avessas, fomentando atuação mais rígida da
Receita Federal na fiscalização de operações similares, ora apresentando
posicionamentos segundo os quais os julgamentos acerca da legitimidade
de planejamentos tributários ficariam sob a responsabilidade dos
Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal e dos Tribunais
Regionais Federais, ante a impossibilidade de reapreciação de matéria de
prova pelo STJ. As duas posições, no entanto, não refletem a melhor interpretação do direito. Realmente,
o STJ não deve ser entendido como uma terceira instância judicial. A
Constituição prevê o duplo grau de jurisdição como direito fundamental,
não havendo ofensa desse direito pela existência de restrições de acesso
aos tribunais superiores. Ao
STJ cabe a uniformização da legislação federal, não podendo, uma vez
acessado pela via do recurso especial, servir de instância voltada à
rediscussão de provas. A jurisprudência do próprio tribunal é uníssona
em acatar esse entendimento, confirmado, inclusive, por sua Súmula nº 7,
segundo a qual "a pretensão de simples reexame de prova não enseja
recurso especial". Isso,
no entanto, não significa que estará vedada ao tribunal a valoração das
provas trazidas aos autos. Há uma diferença entre a simples
reapreciação da prova e sua valoração jurídica. Tanto é assim que,
consultando os precedentes que levaram à edição da referida súmula,
percebe-se que a jurisprudência sempre distinguiu entre requalificação
legal e valorativa da prova produzida, de um lado, e reexame de prova,
do outro. Em
jornalismo, costuma-se diferenciar os fatos das versões. No direito
brasileiro, por influência de Tércio Sampaio Ferraz Júnior e Paulo de
Barros Carvalho, a mesma dicotomia pode ser apresentada,
diferenciando-se os eventos dos fatos. Os eventos só podem ser
convertidos em fatos quando estiverem amparados em provas. Uma vez
constatada a existência do fato, discute-se qual a melhor aplicação do
direito. Logo, existem,
pelo menos, dois tipos de discussão. A primeira concentrada na
constituição ou não de determinados eventos em fatos, pela apreciação de
provas, enquanto a segunda dedica-se, superada a questão anterior, a
verificar o direito aplicável ao caso. Quando
um processo chega ao STJ pela via do recurso especial, a primeira
discussão precisa estar encerrada. Não deve haver dúvidas acerca dos
fatos, não cabendo reapreciação de tal ou qual acontecimento provado nas
instâncias inferiores. Para o direito, os fatos aconteceram e ponto
final. O segundo tipo
de discussão, no entanto, pode e deve encontrar acolhida nos tribunais
superiores. Essa, diga-se, é sua função constitucional. Assim, nos casos
de apreciação da validade de planejamentos tributários, o STJ terá
plena competência para, consubstanciado na convicção dos fatos firmados
nos autos, apreciar a matéria de direito para entender se é ou não caso
de simulação e, com isso, diferenciar a conduta do sujeito passivo como
elisão (lícita) ou evasão fiscal (ilícita). Essa
questão ganha importância porque as grandes discussões que existem em
torno da legalidade dos planejamentos tributários não se dão ao nível
dos fatos, mas quanto à correta aplicação do direito. A linha divisória
entre os atos simulados e os negócios jurídicos indiretos (estes
permitidos pelo ordenamento) é muito tênue, havendo aí um grande espaço
de atuação do STJ na conformação de um arcabouço jurisprudencial acerca
das limitações ao planejamento tributário. É
certo que o STJ não pode apreciar, em tese, a legalidade de determinado
planejamento tributário, já que a caracterização de licitude dependerá
da análise de cada caso concreto, sendo incorreto, portanto, o
entendimento de que o Tribunal condenou, para todos os casos, a
realização de incorporação às avessas. Isso, no entanto, não afasta sua
competência para julgar sobre o direito aplicável, conformando quais os
limites que os contribuintes terão de respeitar para ver sua conduta de
economia fiscal tomada como lícita, o que demonstra, também aqui,
incorreção na afirmação de que os planejamentos tributários não podem
ser apreciados pelo STJ. Não
é crível que se imagine a inexistência de uniformização jurisprudencial
em tema tão importante, por equivocada aplicação da Súmula nº 7.
Interpretação pela incompetência do STJ em analisar planejamentos
tributários adotados pelos contribuintes pode, em última análise,
propiciar a existência de diversos regimes jurisdicionais no Brasil sem a
possibilidade de uniformização, fomentando a atração ou expulsão de
determinados contribuintes em razão da práxis (flexível ou não) que
venha a ser construída pelos tribunais espalhados pelo país, o que pode
fomentar uma espécie de guerra fiscal jurisdicional, intencional ou não,
altamente danosa à Federação, agora tendo como protagonista, não mais o
Poder Executivo, mas os tribunais do país. Diego Bomfim é advogado do escritório Machado Meyer e mestre em direito tributário pela PUC-SP Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor
Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser
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31/08/2010 |