Não. Para defender esse
ponto de vista, seria, em tese, suficiente provar que os bitcoins não
são títulos ou contratos de investimento coletivo, nem contratos
derivativos, já que a Lei nº 6.385, de 1976, não inclui os bitcoins no
rol dos demais valores mobiliários.
Bitcoin é uma moeda eletrônica baseada no uso de criptografia para o
controle das funções de criação e circulação da moeda, sem que seja
necessária uma autoridade monetária centralizada para o exercício dessas
funções. As moedas podem ser armazenadas na forma de um arquivo
"carteira" em computadores ou em outros dispositivos eletrônicos, como
em celulares, ou mesmo em serviços de "carteira" oferecidos por
terceiros na internet.
Essa moeda eletrônica funciona como uma corrente de assinaturas
digitais formadas por meio das chaves públicas e privadas detidas por
seus usuários. Cada moeda possui a chave pública de seu atual
proprietário. A propriedade da moeda é transferida por meio da adição à
mesma da chave pública do beneficiário da transferência, o que somente
pode ser feito com a "assinatura da moeda" pela chave privada do atual
proprietário.
Os bitcoins são um fenômeno puramente tecnológico, libertário da normatividade estatal, sinal dos novos tempos
As transações são validadas pelos demais usuários da moeda que
dedicam capacidade de processamento de seus computadores para tal
validação, em troca de novos bitcoins (atividade conhecida como
"mining") ou de taxas de transação. Assim, o Bitcoin opera como uma rede
"peer-to-peer" sem a necessidade de um terceiro fiduciário para
verificar as transações.
Dessa forma, os bitcoins são ativos na forma de arquivos armazenados
em ambiente virtual. Juridicamente, os bitcoins são bens móveis
incorpóreos, similares a títulos de crédito eletrônicos, mas que com
esses não se confundem, porque não se sujeitam aos requisitos de criação
ou às regras de circulação aplicáveis a esses últimos. A criação e
circulação de bitcoins são puramente fenômeno tecnológico, libertário da
normatividade estatal, um sinal dos novos tempos.
Os bitcoins não são títulos, nem contratos de qualquer espécie, seja
de investimento coletivo ou derivativos. Isso porque não representam
qualquer direito ou promessa de pagamento, nem qualquer manifestação ou
acordo de vontades.
Até aqui, o ponto de vista deste texto já estaria defendido, não
fossem os precedentes da Comissão de Valores Mobiliários ("CVM") no
sentido de analisar a existência de captação de poupança popular, e a
substância econômica do ativo, para conclusão sobre sua natureza de
valor mobiliário.
No Processo RJ 2003/0499, o diretor Luiz Antônio de Sampaio Campos
afirmou expressamente o conteúdo instrumental da definição de valores
mobiliários, e afirmou também que "a nota tonal no tocante a valor
mobiliário passa, portanto, pelo esforço de captação da poupança pública
com a conotação de investimento". Nessa linha de pensamento, os
bitcoins não são valores mobiliários, pois não servem à captação da
poupança popular. Os bitcoins absorvem a poupança popular porque
apresentam a função monetária de reserva de valor, todavia, essa função
não tem a conotação de investimento, mas sim de moeda alternativa àquela
de curso legal. Ressalta-se que a própria Lei 6.385/76 excluiu da
definição de valores mobiliários ativos com característica de
"quase-moeda", como os títulos da dívida pública federal e cambiais de
responsabilidade de instituição financeira.
No Processo RJ 2007/11593, o diretor Marcos Barbosa Pinto destrinchou
os requisitos para caracterização da hipótese genérica de valor
mobiliário "títulos ou contratos de investimento coletivo". Analisando a
substância econômica dos bitcoins, pelo menos dois desses requisitos
seguramente não são encontrados: (i) não há direito de participação, de
parceria ou de remuneração, e (ii) eventuais rendimentos, obtidos com
negociação de bitcoins, não decorrem de esforços de terceiros
empreendedores (mas, sim, exclusivamente da interação de oferta e
demanda pela moeda). Conclui-se, novamente, que os bitcoins não se
caracterizam como valores mobiliários.
Adicionalmente, não haveria conveniência em se alterar a norma legal
para se obter tal caracterização. Na linha de raciocínio do diretor
Otávio Yazbek no processo RJ 2009/6346, relativo a créditos de carbono,
pouco ou nenhum seria o benefício em se estender a competência da CVM ao
Bitcoin, dado que os bitcoins são emitidos como resultado de um
procedimento certificado pelos próprios usuários do Bitcoin, são
desvinculados de qualquer emissor, e são ofertados de forma
essencialmente privada.
Não obstante, à guisa de fechamento, o Bitcoin não é incompatível com
a regulação no âmbito do direito do consumidor, do funcionamento do
sistema financeiro nacional ou, ainda, da proteção de investidores em
valores mobiliários lastreados em bitcoins.
Celso Roberto Pereira Filho é analista de regulação e orientação a emissores
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