A Lei nº 8.009, de
1990, também conhecida como "Lei Sarney", disciplina a impenhorabilidade
do chamado bem de família, chancelando a proteção pétrea do direito à
moradia (artigos 6º e 226 da Constituição Federal de 1988). O instituto é
extremamente relevante, surtindo efeitos sobre a concessão de crédito,
os contratos imobiliários, as garantias contratuais e a efetividade da
execução.
Em mais de 20 anos de existência, o diploma legal sofreu apenas uma
alteração, trazida em 1991 pela Lei do Inquilinato, permitindo a penhora
do imóvel residencial para cobrança de obrigações decorrentes da fiança
locatícia (artigo 3º, VII). No mais, a proteção legal permaneceu
incólume, não obstante algumas tentativas frustradas de reforma.
Por sinal, dentre as principais propostas legislativas apresentadas,
foi intentada: a extensão da proteção ao bem de família do fiador
locatício (PL Senado nº 408/2008 e PL Câmara nº 3.452/2004); o resguardo
da impenhorabilidade no caso de cobrança de impostos devidos em função
do imóvel familiar ou na execução da hipoteca sobre o imóvel dado em
garantia (PL Senado nº 297/2012); o resguardo da impenhorabilidade na
cobrança de condomínio (PL Senado nº 71/2006); a expressa previsão da
proteção aos imóveis residenciais de pessoas solteiras, divorciadas ou
viúvas (PL Câmara nº 104/2009, questão objeto da Súmula nº 364/STJ); a
extensão da proteção legal ao produto da venda do imóvel, sob
determinadas condições (PL Senado nº 60/2006); a possibilidade de
penhora de residências de valor superior a mil salários mínimos (PL
Câmara 4497/2004), dentre outras. No entanto, até o momento, o
Legislativo não logrou êxito na aprovação de quaisquer dessas propostas,
sendo que, ao que consta, algumas delas permanecem em trâmite
legislativo na Câmara e no Senado.
A jurisprudência dos tribunais cumpriu importante papel em 2013, merecendo importante destaque recentes decisões
Assim, vem competindo aos operadores do direito a tarefa de delimitar
e atualizar, em especial por meio do processo hermenêutico, a proteção
legal do bem de família na vigência da referida lei. Nessa toada, a
jurisprudência de nossos Tribunais Superiores cumpriu importante papel
no ano de 2013, merecendo importante destaque, análise e discussão as
recentes decisões aqui colacionadas: (i) o bem de família dado em
garantia por empresa cujos únicos sócios são marido e mulher, que lá
residem, pode ser penhorado, presumindo assim o proveito familiar (ARESP
48975/MG, STJ); (ii) a impenhorabilidade persiste independentemente do
alto valor e localização do bem de família (RR 224300-51.2007, TST);
(iii) o afastamento temporário de quem reside, por necessidade de
trabalho, não afasta a proteção legal (RESP 1400342/RJ, STJ); (iv) a
defesa do bem de família pode ser feita por qualquer interessado (RESP
151281/SP, STJ); (v) é possível a penhora de bem de família em execução
de sentença homologatória de acordo civil relativo para reparação de
crime (RESP 1021440/SP, STJ); (vi) a proteção legal pode se estender a
mais de um imóvel, como no caso de família em que os filhos moram num
local e os pais em outro (RESP 1126173/SP, STJ, com posição de certa
forma divergente no próprio STJ, vide ARESP 301580/RJ); (vii) afasta a
impenhorabilidade quando houver fraude à execução (ARESP 334975/SP,
STJ); (viii) a impenhorabilidade persiste, se apenas 50% do bem (no
caso, imóvel indivisível) for adquirido em fraude à execução (RESP
1084059/SP, STJ); (ix) há preclusão consumativa para alegação da
condição do bem de família (ARESP 70180/RS, STJ, com posição da mesma
Corte, no sentido de que caberia alegação até o final da execução, por
se tratar de matéria de ordem pública: ARESP 161734/RJ). O Tribunal
Regional do Trabalho da 3ª Região também chegou a abordar algumas
questões relativas à referida norma, apontando, dentre alguns julgados,
que o imóvel residencial utilizado para atividade econômica não é bem de
família (Proc. 0000606-28.2011, TRT 3ª Região), assim como o imóvel
residencial em construção (Proc. 0082800-86.2007, TRT 3ª Região).
Ademais, não custa lembrar que o tema foi objeto das Súmulas de
números. 449 e 486 do STJ, prevendo a primeira que a vaga de garagem com
registro próprio não configura bem de família, para efeito de penhora, e
a segunda firmando a impenhorabilidade do imóvel residencial locado,
desde que a renda seja revertida para a subsistência ou moradia da
família do devedor.
Muito embora as decisões e orientações acima não tenham caráter
vinculante, podem servir a indicar os contornos atuais deste importante e
controverso instituto do direito brasileiro, em especial no que tange
aos pontos que a lei deixou, até o momento, de abordar de forma expressa
e direta.
Eduardo Chulam é sócio do escritório Chulam Advogados e mestrando em direito processual pela Universidade de São Paulo
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