Procusto é personagem
da mitologia grega. Os viajantes que passavam por sua casa eram
acolhidos com uma refeição e um leito. A cama, segundo ele, seria
mágica, pois todos que nela se deitassem teriam o seu exato tamanho.
Para que a magia se concretizasse, no entanto, os viajantes maiores que o
leito teriam suas pernas amputadas, enquanto os menores seriam
esticados. Em ambos os casos, os viajantes "caberiam" com exatidão. Mas,
como consequência funesta, os poucos sobreviventes seriam aleijados.
Para que todos fossem torturados, Procusto possuía, secretamente, outra
cama e, caso alguém coubesse exatamente em uma delas, oferecer-lhe-ia a
outra. Não havia como escapar.
Procusto cometia tais atrocidades na busca pela justiça: todos os
sobreviventes teriam a mesma altura e passado pela mesma tortura. Os
aleijados sobreviventes começaram a se conformar com tamanha insanidade,
imaginando que o futuro seria promissor.
Pois bem. Hoje, no Brasil, algo bastante parecido acontece com as
micro e pequenas empresas (MPEs), principalmente no acesso ao mercado de
capitais. O discurso oficial do governo vai no sentido de apoiar as
MPEs, principalmente as chamadas de "startups", excelentes criadoras de
empregos que podem melhorar os índices de desenvolvimento econômico e de
distribuição de renda. A Constituição Federal em seu artigo 179, torna
obrigatório regime desburocratizado para as MPEs. Mas parece que
Procusto saiu dos livros de mitologia para virar realidade.
A flexibilização das regras de acesso ao mercado de capitais para as MPEs é verdadeiro leito de Procusto
Observe-se as regras da Comissão de Valores Mobiliários (CMV). Os
artigos 7º da Instrução CVM nº 480, de 2009 e 5º da Instrução CVM nº
400, de 2003 dispensam automaticamente as MPEs dos registros de emissor
de valores mobiliários e de oferta pública, respectivamente, o que
facilitaria o acesso ao mercado de capitais. Aqui está o leito
procustiano.
Ao se continuar a análise é fácil perceber que há algo muito
distorcido. O artigo 1º da Instrução CVM nº 480 determina que todos os
emissores de valores mobiliários adotem forma de sociedade anônima,
exceto quando a regulamentação dispuser de maneira diversa, e a única
exceção em vigor está no artigo 33 da mesma instrução, que permite às
sociedades limitadas emitir publicamente cédulas de crédito bancário e
notas comerciais. Mas qual é o problema com tal limitação? Bastante
grande! Tais títulos são representativos de dívida, não de capital, o
que praticamente os torna inútil, já que o crédito às startups, no
mercado de capitais, é escasso e muito caro.
Mesmo no caso dos fundos de venture capital - os "fundos mútuos de
investimento em empresas emergentes" da Instrução CVM nº 209/94 -, que
buscam investir em sociedades menores onde regras sofisticadas de
governança corporativa pouco importam, a única forma societária
permitida é a das sociedades anônimas.
A solução seria fazer a empresa inovadora adotar tal forma
societária. Mas é aí que Procusto começa sua maldade: a sociedade
anônima é sofisticada, complicada e de cara manutenção, o que vai
absolutamente contra o espírito e as limitações das startups. As
obrigatórias publicações de demonstrações financeiras e outros atos
societários por meio da imprensa oficial, além de absolutamente
desnecessárias, seriam mais eficientes se feitas por meio da internet.
Mesmo que a startup consiga escapar do primeiro leito de Procusto, há
o segundo, do qual a MPE não se desvencilhará. Segundo o artigo 3º da
Lei Complementar nº 123, de 2006 - a Lei do Simples Nacional -, a
microempresa é aquela com faturamento anual de até R$ 360 mil, enquanto
na empresa de pequeno porte tal limite é ampliado para R$ 3,6 milhões. O
segundo leito de Procusto está no parágrafo 4º do mesmo artigo, que
proíbe, às MPEs, a adoção de forma de sociedade por ações - inclusive a
anônima.
Há mais uma maldade: o desenquadramento do regime da Lei Complementar
123 equivale também à exclusão do Simples Nacional, regime tributário
favorecido aplicável às MPEs. Isso, por si só, é um grande absurdo, já
que coloca as jovens empresas de tecnologia em poucas condições de
competir doméstica e internacionalmente.
Trocando em miúdos, a suposta flexibilização das regras de acesso ao
mercado de capitais para as MPEs é verdadeiro leito de Procusto:
anuncia-se como mágica, mas que culmina com quase todos mortos ou
aleijados, mas supostamente conformados, pois seria medida de justiça e
de proteção do mercado de capitais. Só que tal proteção é excessiva, já
que o potencial destrutivo de uma emissão de valores mobiliários de uma
MPE é absurdamente baixo.
A adoção de política coordenada entre os órgãos federais responsáveis
pelo assunto (Secretaria da Micro e Pequena Empresa, Ministério do
Planejamento e CVM) e o Congresso Nacional poderá resolver rapidamente o
assunto, reduzindo-se as barreiras ao financiamento das startups por
meio do mercado de capitais. Uma das iniciativas mais louváveis que se
viu nos últimos anos é o Projeto de Lei nº 4.303, de 2012 que, quando
aprovado, adotará o regime das sociedades anônimas simplificadas, muito
adequado às MPEs.
Marcelo Godke Veiga é sócio de Godke Silva & Rocha
Advogados (São Paulo) e de Godke Marathas Silva &Williams (Miami),
mestre em direito pela Columbia University (Estados Unidos) e pela
Universiteit Leiden (Países Baixos). Doutorando pela Universiteit van
Amsterdam (Países Baixos) e professor da FAAP, do Insper e do Instituto
Internacional de Ciências Sociais/Centro de Extensão Universitária.
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