NOTÍCIA

O direito autoral e o novo cenário digital

Opinião Jurídica:

O direito autoral e o novo cenário digital

Foto Destaque

Foi noticiado no mes de julho que a Amazon vendeu, inadvertidamente, reproduções não-autorizadas de livros eletrônicos. Ao perceber o equívoco, a empresa "entrou" remotamente no aparelho Kindle de cada um dos compradores e apagou aquelas obras da memória, reembolsando os consumidores pelo valor que havia sido gasto com os livros que evaporaram - junto com eventuais marcações ou anotações neles feitas.

A atitude causou grande impacto na opinião pública, levando a empresa a, rapidamente, prometer que não repetiria o gesto no futuro. Tamanho constrangimento lembra a posição da indústria fonográfica quanto ao uso de medidas tecnológicas de proteção embutidas na música vendida em formato digital, as quais poderiam, por exemplo, informar a ocorrência de reproduções ou mesmo evitar cópias não-autorizadas. Na prática, não impediram nada disso, conflitaram com os direitos do consumidor e causaram inúmeros problemas, levando a maioria das empresas a abdicar de tais recursos ou pelo menos admitir a infelicidade da ideia.

Em comum entre as duas situações percebe-se o medo causado pela mais leve ameaça de violação aos direitos autorais - e a difusão do impulso de acreditar que a difícil luta contra usos não autorizados de obras é uma guerra em que os fins justificam todos os meios. As armas empregadas são tão desprovidas de razoabilidade que atraem antipatia maciça e colocam em risco a credibilidade daqueles que as manejam - como tem ocorrido, por exemplo, nos rumorosos processos judiciais movidos contra usuários de serviços de compartilhamento de arquivos.

Muito tem se destacado quão irônico é o fato de um dos livros apagados pela Amazon ser justamente o "1984", de Orwell, famoso por sua crítica a uma sociedade sem privacidade. Uma ironia muito maior, porém, passou despercebida: no dia em que a confusão do Kindle ganhava os jornais comemorava-se, nos mesmos Estados Unidos, o cinquentenário de uma histórica decisão judicial. Em 21 de julho de 1959 os Correios americanos foram obrigados a distribuir o livro "O Amante de Lady Chatterley", cujo conteúdo aquela instituição alegava ser pornográfico.

Os setores mais conservadores acharam prudente aceitar a derrota e não recorrer à Suprema Corte, onde muito provavelmente uma nova análise acabaria revendo a posição do tribunal quanto à distribuição de material "pornográfico". Para além das óbvias implicações ligadas à liberdade de expressão artística, pode se traçar um paralelo desse caso com a perplexidade causada hoje pela música do artista Girl Talk, famoso por sua intrincada mistura de "samples" de canções já existentes. O fato dele não ter sido até hoje vítima de uma ação judicial só pode ser explicado pelo medo de que, ao examinar uma forma artística tão inovadora, as cortes sejam obrigadas a admitir que têm que se adaptar aos novos tempos, legitimando aquele estilo - o que talvez leve à legitimação de outros casos menos complexos e mais oportunistas de utilização de samples. Se é para poupar os dedos, adeus aos anéis.

Melhor assim. Virou lugar comum dizer que a indústria, principalmente a fonográfica, perdeu tempo precioso - que poderia ter empregado entendendo o novo cenário digital - brigando pela perpetuação de um modelo de negócios anacrônico. Certa ou errada, a indústria cultural precisa acordar logo para o fato de que, se as mudanças são inevitáveis, é melhor tentar influenciá-las positivamente. Não há mais sentido na mistificação dos direitos autorais como algo "sagrado", ainda mais com a crescente percepção de que os interesses dos autores não necessariamente estão afinados com a indústria. É ilustrativo, neste sentido, o manifesto "MPB - Música Para Baixar", lançado também na semana passada por compositores e intérpretes brasileiros.

Não se confunda, porém, a tal "influência positiva" com o lobby puro e simples a favor de iniciativas impopulares como transferir para os provedores de acesso à internet a tarefa estatal de vigiar e punir, nem polarizar como no recente projeto de lei sobre crimes informáticos. É preciso ter inteligência e saber "cortar na carne", como perceberam as agências de publicidade ao elaborar seu código de autorregulamentação. Sem fazer juízo sobre a atuação do Conselho de Autorregulamentação Publicitária (Conar), e já rechaçando a ideia de que a autorregulamentação pode, em qualquer setor, ser autossuficiente, é indiscutível que a simples existência dessas regras não só ajudou a resolver problemas que de outro modo ficariam sem resposta como também forneceu parâmetros que certamente influenciarão qualquer tentativa posterior de regulamentação.

Já há discussões acadêmicas nesse sentido nos Estados Unidos, em torno de iniciativas como a criação de um código de ética para a realização de documentários. É de fato mais efetivo buscar um consenso mínimo em torno dos casos em que é preciso pedir autorização sobre um trecho de música captada incidentalmente do que seguir afirmando que todos têm que pedir autorização sobre tudo em todas as hipóteses, alimentando assim o medo e dificultando a criação de novas obras. No Brasil, onde a lei vigente sequer diferencia adequadamente a reprodução de trechos de um livro para fins educacionais da cópia em série com fins comerciais, pode-se imaginar como concessões mútuas seriam bem-vindas.

O ministro da Cultura utilizou significativa imagem ao falar em um seminário internacional realizado no ano passado em Fortaleza. Segundo Juca Ferreira, o direito autoral não pode continuar a ser visto como uma "casa de marimbondos" - um dos aqueles assuntos em que todo mundo tem medo de pôr a mão, valendo a lógica do "melhor deixar como está". Está mais do que evidente que é preciso outra atitude em relação aos seus muitos problemas. Todos podem ganhar com as mudanças, e certamente todos perderão com a inércia. Os marimbondos existem e, antes que seja tarde demais, é preciso encará-los de frente.

Bruno Lewicki é advogado, doutor em direito autoral pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), professor de pós-graduação do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro e ministrará o curso "Viagem ao centro do direito autoral" a partir do dia 26 de agosto no Polo de Pensamento Contemporâneo no Rio de Janeiro ( www.polodepensamento.com.br )

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações


http://www.valoronline.com.br/?impresso/legislacao_&_tributos/197/5752494/0/o-direito-autoral-e-o-novo-cenario-digital
07/08/2009


20-11-2014
0;
20-11-2014
Carf, a prova na Câmara Superior e outras questões fiscais
20-11-2014
Empresa que adquire bem de boa-fé mantém crédito de ICMS

  Fale consoco pelo MSN ®
English    English
Rua Fernandes Tourinho, 470 - Salas 711/712, Savassi, Belo Horizonte / MG, Brasil - CEP: 30112-000 - Telefax: (55-31) 3347-4790
Copyright 2007, AC Portal. Todos os direitos reservados a Guimarães Pereira - Advogados e Consultores.
ACPortalRLM